Sunday, May 24, 2009

Saturday, April 25, 2009

Três dedicatórias

No seu derradeiro Novembro, almoçámos pela última vez frente a frente, no Varanda da União, excelente cozinha portuguesa num andar de cobertura, ao fim da rua Castilho. Por essa altura, já os resultados dos exames e as inquietações dos clínicos lançavam nuvens escuras sobre o seu estado de espírito. Mas não sobre o seu humor: para o provar contou-me uma história antiga e picaresca, com um colega de trabalho enrascado numa situação complicada no emprego, que terminava com o dito a proclamar:

- Em resumo, estou f…

E completava, com um sorriso breve:

- E assim estou eu.

Eu retorquia-lhe que não, que tivesse calma, que ainda havia muito jogo. Ele fez-me a vontade e falámos de outras coisas diante de um cabrito (dos feitos dos netos, da sua actividade associativa, da bondade do vinho e do serviço). Mas, percebo agora, intimamente ele já sabia.

Um mês depois, ainda o pior não se tinha manifestado, passámos o jantar de consoada em sua casa. Notei aí que ele tivera um cuidado especial na elaboração dessa noite. Para além da excelente mesa de iguarias que açambarcava a sala, comprara postas de um bacalhau caríssimo, um primeiro entre pares do fiel amigo, tudo orçado em duzentos euros. Os miúdos, brincando com a situação, reclamavam que lhes fosse servido o bacalhau dos quarenta contos.

Mais notei quando, já quase terminada a tradicional entrega dos embrulhos, ele anunciou uma novidade: uma prenda “só dele” (“não minha e da avó, só minha!”) para filhos e netos. Cada uma ostentava uma dedicatória diferente. Ao lê-las, imediatamente as senti como escritas por um homem que queria deixar uma marca, um legado, que podia já não ter oportunidade de voltar a dizer aquilo que queria.

Ao meu filho mais novo, calhou-lhe “A cidade e as serras”. Na primeira folha branca escrevera:

“Quando daqui a muitos anos tiveres a tua Biblioteca recheada de bons livros, quero que este figure nela com uma lembrança do avô Mata. Bom Natal!”

Ao mais velho, que ele apelidava morgado, ofereceu um “Amor de perdição”, que lavrava:

“Fernando Pessoa disse que a sua Pátria é a língua portuguesa. Aprende também tu a amá-la através deste belo livro. Bom Natal. Avô Mata.”

A mim, deu-me o DVD do filme “Gloria”. No interior, colocara um rectângulo de papel com a sua fotografia e, por baixo:

“Este é um dos filmes da minha vida. Não me lembro de quando o vi, mas foi de certeza há muitos anos. Para mim o seu grande valor, para além da magnífica realização de John Cassavetes e da soberba interpretação de Gena Rowlands, é o sublinhar do respeito que se deve ter pela palavra dada, mesmo que isso signifique ter de cumprir uma tarefa que se abomina.”

Já de madrugada, no caminho para casa, perguntei aos rapazes se tinham percebido o que o avô lhes ofertara. Responderam em coro: “Sim! Um livro!” A que eu respondi: “Não, burros, uma dedicatória.”

Vejo, nestas três dedicatórias, o resumo de uma vida, a síntese de um homem, assinada pelo próprio. O amor pelos livros, o amor pela nossa língua, o amor pela palavra de honra. Com estes três vectores, pode-se construir o espaço que ele encheu durante a sua passagem entre nós. E quando leio qualquer uma delas, percebo com clareza a falta que ele me faz.

Sunday, March 8, 2009

Os livros

Regressávamos num domingo cinza de Inverno, o carro num esforço suave a cada contracurva da serra. Todos vínhamos elogiando a casa que visitáramos a uns amigos, aquisição recente, moradia impressionante, quase apalaçada, de jardim generoso e balcão sobranceiro ao rio, salas ecoantes – até um lagar havia, esperando a azeitona nova! Ele, atento ao nosso entusiasmo, conduzia calado, quando, aproveitando um silêncio breve, comentou com uma nota de pena na voz:


- Pois já repararam que naquela casa maravilhosa não vimos um único livro?


Assim era. Um homem com uma biblioteca de quase três mil volumes – para mais todos lidos. Ainda hoje, quando regresso a sua casa, à nossa casa, é quando olho para aquelas prateleiras pejadas que invadiram as paredes, crescendo como uma hera centenária, que mais sinto a sua presença. Como se ainda ali o visse no cadeirão azul, abrindo na marca num gesto célere, tão típico dele, ou folheando sereno ou, ainda, de pé, todo esticado para retirar um livro arrumado mais lá em cima, como se a colher um fruto num ramo alto de um pomar.


Diante daquela sucessão de lombadas coloridas, arrumadas lado-a-lado como os dias de uma vida e repetindo-se em cada divisão da casa, a cada recanto do mobiliário, sinto-me como o Zé Fernandes de “A cidade e as serras” (um dos primeiros livros que me passou para as mãos, o que repetiu com os netos) quando, esmagado, visitava pela primeira vez a parisiense biblioteca do seu amigo Jacinto: “A Biblioteca transbordara através de todo o 202! Não se abria um armário sem que de dentro se despenhasse, desamparada, uma pilha de livros! Não se franzia uma cortina, sem que detrás surgisse, hista, uma ruma de livros! E imensa foi a minha indignação quando uma manhã, correndo urgentemente, de mãos nas alças, encontrei, vedada por uma tremenda colecção de Estudos Sociais, a porta do Water-Closet!”


Na verdade, lá não se ia a tanto. A porta da casa de banho não chegou a estar impedida. Mas, uma vez entrados, repararíamos que repousavam sempre sobre um banquinho baixo, de tampo esverdeado, três ou quatro livros.


Deixou-me, como parte melhor da sua herança, um apelo físico pelos livros, enquanto objecto e enquanto símbolo. Satisfaz-me o toque do papel impresso e da fímbria esfarelada daquelas edições mais antigas como as da Lello, que ainda pedem o corta-papéis. Inebria-me o cheiro de um calhamaço que esperou anos por ser aberto, uma mistura de tinta, couro e tempo passado. Encontrar-me-ão em livrarias, passeando-me lentamente ao longo de escaparates e estantes, a cabeça inclinada para ler os títulos, procurando tesouros ocultos. Desenvolvi, com os livros, uma relação química: compro por ter gostado de um título, de uma capa, de uma frase numa página aberta ao acaso. Algo muito parecido com o amor por uma mulher, que pode durar uma vida inteira só por causa de um primeiro sorriso. Não é a mim que apanham com um “e-book”.


Boas lojas de livros podem ser anárquicas, como foi a Buchholz em Lisboa ou ainda o é a Foyles de Londres, em Charing Cross, ou maciças, tal a FNAC da Avenue de Ternes em Paris, que pouco tem a ver com a loja de electrodomésticos com o mesmo nome que encontramos no Colombo. Ou pequenos jardins, de rosas seguras, como a Bulhosa das Amoreiras ou a livraria do IFP na Luís Bívar. Também obras de arte: a Lello do Porto, desafiando em estatura a fronteira Torre dos Clérigos. Ou armazéns recônditos como os alfarrabistas que se vão aguentando no Carmo e na Trindade. Em todas me sinto no aconchego de uma casa, como também ele se sentia.


Ora isto de algum sítio vem. Não sei se dos genes ou se daqueles domingos em que, uma vez por ano, o ajudava na verificação da biblioteca caseira. Ele, alcandorado num escadote, puxava volume a volume das estantes, abria a capa, ditava-me o número que inscrevera na marca do carimbo que todos os seus livros tinham. Eu, sentado cá em baixo, os pés sem chegar ao chão, marcava com uma cruz o título correspondente, num caderno de linhas. De vez em quanto parava e lia-me um parágrafo em voz alta, falava-me desse livro ou do seu autor. Deste modo fui ouvindo dizer, como se fossem visita lá de casa, de Malaparte e de Manuel de Mello, de Oliveira Martins e de Dos Passos, de Thomas Mann e de Graham Greene. E eu, um miúdo preguiçoso para ler, assim comecei por gostar de livros, ainda antes de apreciar a leitura.


Outras coisas não me conseguiu transmitir. Lia depressa, fluido, concentrado, quase voraz. Conseguia despachar três exemplares da Vampiro ou da Argonauta numa tarde de folga. Tinha apetites, por estilos, por autores. Viveu uma fase de neo-realismo italiano e empinou doses fartas de Pavese e de Vittorini. Apaixonou-se por Ross Mac Donald, um autor americano de “thrillers”, e foi a obra completa quase toda de seguida, à medida que os foi encontrando pelas livrarias, que não estavam editados em Portugal e a Amazon ainda não existia.


Admitia uma clara preferência por prosa, pela história, pelo testemunho político. Fascinava-o o período da segunda guerra, ele que nasceu em trinta e oito e que trabalhou depois numa Alemanha onde ainda eram visíveis, nas pessoas e nas pedras, as marcas do desastre. A este tema correspondia uma estante inteira, soberbamente encadernada a vermelho e negro. Mas podíamos também encontrar por lá espalhada bastante poesia, alguma filosofia, vestígios de ciências sociais. Recordo-me, já adulto, de me deparar numa prateleira mais alta com Tocqueville e Freud e de me perguntar se ele lera aquilo. Fizera-o, de facto.


De entre todos os autores da sua vasta colecção, nutria o amor mais profundo pelos grandes da nossa língua: Eça e Ramalho, Camilo, Júlio Dinis, o padre António Vieira, os diversos Fernando Pessoa, Aquilino. Citava-os com frequência e a propósito. “Como homem que devera e pagara”, “favas destas nem em Paris”, “malhas que o Império tece”, “que ferro!” e outras que tal povoam a memória que dele tenho. Não descurava, igualmente, os bons cultores que o português teve no Brasil: Machado de Assis, Jorge Amado, Erico Veríssimo e Graciliano Ramos, este último um dos que mais considerava. E, do seu século, Torga, Redol, Ferreira de Castro, José Régio, Cardoso Pires, José Rodrigues Miguéis e, este já com alguma reserva, Lobo Antunes.



Três mil livros depois, ao chegar ao ocaso da vida, não seria um académico, nem um literato, mas sim um homem culto, epíteto que só as páginas dobradas conferem e que os canudos universitários não proporcionam.


Na última viagem para o hospital, insistiu em levar uns volumes antigos que comprara num alfarrabista, mandara restaurar e encadernar e acabara de receber: “O sargento-mor de Villar”, de Arnaldo Gama, e uma biografia de Bocage por Rocha Martins. Não percebi se ainda pensava poder lê-los ou se os queria simplesmente à mão. Mas se o Paraíso existir, deverá ser como o sonhou Jorge Luís Borges: uma espécie de biblioteca. E ele lá estará, acabando de ler essas duas obras que o acompanharam na derradeira hora, sentado num cadeirão azul, cercado de estantes altas e lombadas de cabedal.

Wednesday, February 18, 2009

Remissões

Dois "links" a propósito para "posts" no blog Mataspeak, onde ele já foi tema de conversa.

http://mataspeak.blogspot.com/2008/02/o-lugar-ao-lado.html

e

http://mataspeak.blogspot.com/2008/05/my-old-man.html

Thursday, February 5, 2009

Os cromos

Pois naquele tempo vendiam-se cromos da bola ricos e cromos da bola pobres.

Estes, os pobres, até mais para o paupérrimo: tiras de seis centímetros de altura por pouco mais de dois de largo, com uma fotografia mal focada ou até tremida, quase sempre deficientemente impressa, montada sobre um fundo monocromático baço que contrastasse com o equipamento. Todas as figuras se empertigavam na mesma pose: de pé, com a trapeira ao lado da bota ou na mão, muito direitos que a largura do cromo não chegava para grandes movimentos. De um ano para o outro, se algum jogador se transferia para outro clube, o editor pintava o novo equipamento por cima da fotografia antiga, sem grandes preocupações de rigor. Para cada equipa, só dezasseis jogadores, para caberem todos numa página da caderneta.

Os cromos ricos tinham mais do dobro do tamanho, boas chapas tiradas com as bancadas do clube em pano de fundo e jogadores em poses variadas. Vinha o plantel todo, o que dava uma caderneta mais grossa e difícil de completar. Vendiam-se em carteiras de três, não me recordo por quantos tostões, mas tostões suficientes para serem um luxo só justificável por uma boa nota na escola.

Hoje, os cromos da bola, por comparação, são milionários. Cada carteira oferece seis. Para facilitar, autocolantes. As cadernetas, em papel acetinado e colorido, vêm multilingues para servirem praticamente toda a União Europeia. Pode-se encomendar, por via postal, os números em falta. Na altura, se quiséssemos acabar as colecções, tínhamos que cumprir todos os dias, no intervalo para recreio, o ritual da troca de repetidos. As figuras repetidas podiam ser uma tragédia económica: certa vez, numa única carteira que esgotou logo o magro pecúlio que levara para a tabacaria, saíram-me três exemplares do terceiro guarda-redes do Atlético. O olhar de desalento que devo ter exibido comoveu o tabaqueiro, normalmente severo, que me ofereceu nova carteira para reparar o rombo. À época, para terminar a colecção, só no Rossio, junto aos pilares da entrada da estação, onde fulanos com ar circunspecto faziam “trading” de cromos, comprando barato e vendendo caro.

Colar as imagens na caderneta requeria habilidade de trabalhos manuais. As colas disponíveis não prestavam: ou a Cisne branca, uma pasta infame que endurecia que nem pedra à segunda utilização, bloqueando a espátula, ou a Cisne líquida, num pote com uma tampa de enroscar com pincel agarrado, que rapidamente borrava tudo o que apanhasse pela frente num rasto peganhento que acabava fatalmente nas mãos e nas roupas.

O futebol que os cromos retratavam também diferia muito do de agora. Havia muitos mais portugueses, com patronímicos de cepa tradicional como Pavão, Rodrigues ou Henriques, em vez de “petits noms” como Deco ou Dani. Os jogadores ficavam uma vida inteira no mesmo clube. O Benfica ganhava muito, o Sporting um pouco, os outros nada. O Porto não passava ainda de um Belenenses do norte. O futebol praticava-se sobretudo a sul e especialmente em Lisboa e ao redor, onde residia a força industrial do país. Os clubes de bairro da capital, como o Atlético e o Oriental, ainda sobreviviam pela primeira divisão, como na altura se chamava. Fábricas como a CUF ou a Riopele conseguiam manter equipas a esse nível. Na outra banda, o Barreirense tinha dinheiro para contratar internacionais brasileiros. Farense e União de Tomar, entretanto falidos e semi-desaparecidos, nunca baixavam à segunda. Na Académica, ainda estudavam para doutor.


Foi neste Portugal de cromos e bola como já não há que um colega de primária, andaria eu pelos oito anos, me propôs um negócio da China: a aquisição de uma caderneta de cromos pobres, semi-preenchida, por um dado preço que não me ficou na memória. Como na altura se pedia autorização à parentela antes de concluir este género de negócios, assim fiz. Levei um não categórico do meu pai. “Nem pensar. Qual é o sentido de comprar uma caderneta velha? Isso é dinheiro deitado à rua!” Tive que me conformar com a nega e comunicar ao meu amigo que não havia acordo, porque o meu pai não deixava. Ainda fui xingado. Fiquei chateado.

No dia seguinte, tive aula de ginástica. Praticava a modalidade no Sporting, com um professor de pêra, muito prestigiado por ter um programa de televisão dominical em que algumas crianças executavam uns pinos e corriam à volta do plinto, num estúdio mínimo. Nunca fui entusiasta deste desporto e o jeito não me favorecia. Pendurava-me no espaldar, corria e perfilava-me e pouco mais. O mestre dividiu-nos em categorias pela perfeição das cambalhotas e eu nunca passei da terceira e última. Dizia ele que eu metia mal a cabeça. Razão suficiente para cambalhotas pouco sucedidas, tendo hoje a concordar.

As classes tinham lugar num ginásio debaixo da arquibancada do velho Alvalade e o meu pai ia recolher-me à saída, junto à escadaria das portas poente. Quando entrei para o carro, ele não arrancou logo: “tenho aqui uma coisa para ti”. Pendurei-me no banco da frente e ele meteu-me na mão uma dúzia de cromos, para as minhas mãozinhas de oito anos literalmente uma mão cheia, e logo dos cromos ricos. Fiquei extasiado – “ena!” – diante daquele presente inesperado que compensava o mau passo do frustrado arranjo do dia anterior. Abri as figurinhas em leque enquanto analisava a leva que me coubera em sorte. Aparentemente, saíra-me só um jogador conhecido:

- Este é o Arnaldo, da CUF – resumi.
- Tens aqui também o Jacinto João, do Setúbal. E olha o Jaime Graça.
- E o Wagner do Sporting, não tinha visto!
- E aqui não tens o Damas?

Era o Damas, realmente, de fato treino verde e boné. Não percebi como me podia ter escapado, na primeira leitura, o guarda-redes do meu clube, um dos jogadores que mais admirava. Afinal, a mão-cheia parecia mais cheia do que ao início parecia.

- Não tinha reparado que também vinha aqui um do Belenenses – admirei-me.
- E aqui outro: o Pietra. E olha ali o Cubillas do Porto. E o Benje, do Farense.

De facto, o Benje, único guarda-redes negro de todo o campeonato, passara-me desapercebido. Comecei a ficar baralhado. Não entendia de onde estava a vir aquela malta toda. O meu pai continuava:

- Já viste aqui o Eusébio? E o Matine? E o Humberto Coelho. E olha aqui o Manaca…
- Tão aqui o Dinis e o Yazalde!

A minha mão já não segurava tanto papel. E continuavam a aparecer vedetas e mais vedetas, cada vez em maior número. A equipa leonina já bem representada. O próprio Yazalde, o grande Chirola que aviava aos três e quatro por jogo, como cereja em cima do bolo, logo no meio do molhe. Eu, confuso com o que se estava a passar, perguntava:

- Não percebo. Como é que eu não vi logo o Yazalde?
- Devia estar colado a outro. Arruma lá isso que vamos comprar a caderneta.

Deliciado com mais esta boa nova, encostei-me cá atrás, repassando o meu molhe de cromos, e de cromos ricos! Até hoje, perdura em mim uma memória dupla sobre aquela tarde: a alegria intensa da surpresa e a confusão perante o processo, a estranheza sentida ao ver craques e mais craques a encavalitar-se na minha mão. Durante mais alguns anos, ainda me intrigava como fora possível aquele milagre de Canã da multiplicação dos cromos. Sei agora, claro, que ele comprara as carteiras e que as abrira, que ordenara os jogadores de modo a provocar aquele efeito de crescendo, que os guardara no bolso e os fora discretamente acrescentando, criando um momento mágico, breve mas eterno. Sei agora também que tanto cromo constituía para ele, à época, um pequeno sacrifício, que pagou em turnos e enxaquecas.


Porque escolhi uma história tão leve como primeira memória neste blogue? Porque diz muito sobre o homem que foi buscar o seu filho. E porque foi a primeira que me veio à cabeça, o que também tem o seu significado. Significado que só entendi totalmente quando anos depois vi na parede da aula do meu filho, no jardim infantil, um trabalho colectivo para o Dia do Pai, em que cada criança completara a frase “Gosto do meu pai porque…”. A que me tocava dizia: “… porque faz legos difíceis.”

Construir legos difíceis, encher uma manita de cromos ricos, em suma, maravilhar, eis acções que dão significado ao que andamos por cá a fazer no tempo que nos está reservado. Poucos o percebem, prisioneiros que são da sua propria imagem de seriedade.

Felizmente, nem todos assim: Henrique IV, monarca sábio, o rei que acabou com as guerras de religião em França, entendeu-o bem quando recebeu o embaixador de Espanha de gatas, montado por um dos filhos. Perante a estranheza do diplomata, perguntou-lhe se era pai. Quando este respondeu que sim, o monarca retorquiu: “Então, compreende certamente.”

Wednesday, February 4, 2009

Prefácio

Um dia deu-me o sono como a qualquer criança.
Fechei os olhos e dormi.

Alberto Caeiro

Este blogue foi criado “in memoriam” de Américo Carlos Pereira da Mata, meu pai, nascido em Vila Nova da Barquinha em 23 de Maio de 1938 e falecido em Lisboa a 25 do mesmo mês em 2008: um homem que vale a pena ser lembrado. Neste sítio, deixarei histórias que ilustram a memória que dele me ficou. Neste sítio irei repassando e repisando as muitas saudades, que por muito que as mate não se deixam morrer.

Neste sítio contrariarei –contrariaremos - um dos poetas que ele mais apreciava, que escreveu, no mesmo poema de onde retirei a epígrafe:

“Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples
Tem só duas datas — a da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra coisa todos os dias são meus.”

Como o meu é apenas um dos ângulos pelos quais ele deve ser recordado, esta página fica aberta a contribuições. Os familiares e amigos que aqui queiram publicar podem remeter os seus textos para o endereço cmspmata@gmail.com.

O título deste blogue, “La gloire de mon père”, roubei-o sem pudor ao romance autobiográfico de Marcel Pagnol, que começa com a seguinte, belíssima, frase: “Je suis né dans la ville d'Aubagne, sous le Garlaban couronné de chèvres, au temps des derniers chevriers”. É o título que eu queria e o título que ele merece e o facto de estar ocupado desde 1957 pelo bom do Pagnol não tinha por que me intimidar.