Sunday, March 8, 2009

Os livros

Regressávamos num domingo cinza de Inverno, o carro num esforço suave a cada contracurva da serra. Todos vínhamos elogiando a casa que visitáramos a uns amigos, aquisição recente, moradia impressionante, quase apalaçada, de jardim generoso e balcão sobranceiro ao rio, salas ecoantes – até um lagar havia, esperando a azeitona nova! Ele, atento ao nosso entusiasmo, conduzia calado, quando, aproveitando um silêncio breve, comentou com uma nota de pena na voz:


- Pois já repararam que naquela casa maravilhosa não vimos um único livro?


Assim era. Um homem com uma biblioteca de quase três mil volumes – para mais todos lidos. Ainda hoje, quando regresso a sua casa, à nossa casa, é quando olho para aquelas prateleiras pejadas que invadiram as paredes, crescendo como uma hera centenária, que mais sinto a sua presença. Como se ainda ali o visse no cadeirão azul, abrindo na marca num gesto célere, tão típico dele, ou folheando sereno ou, ainda, de pé, todo esticado para retirar um livro arrumado mais lá em cima, como se a colher um fruto num ramo alto de um pomar.


Diante daquela sucessão de lombadas coloridas, arrumadas lado-a-lado como os dias de uma vida e repetindo-se em cada divisão da casa, a cada recanto do mobiliário, sinto-me como o Zé Fernandes de “A cidade e as serras” (um dos primeiros livros que me passou para as mãos, o que repetiu com os netos) quando, esmagado, visitava pela primeira vez a parisiense biblioteca do seu amigo Jacinto: “A Biblioteca transbordara através de todo o 202! Não se abria um armário sem que de dentro se despenhasse, desamparada, uma pilha de livros! Não se franzia uma cortina, sem que detrás surgisse, hista, uma ruma de livros! E imensa foi a minha indignação quando uma manhã, correndo urgentemente, de mãos nas alças, encontrei, vedada por uma tremenda colecção de Estudos Sociais, a porta do Water-Closet!”


Na verdade, lá não se ia a tanto. A porta da casa de banho não chegou a estar impedida. Mas, uma vez entrados, repararíamos que repousavam sempre sobre um banquinho baixo, de tampo esverdeado, três ou quatro livros.


Deixou-me, como parte melhor da sua herança, um apelo físico pelos livros, enquanto objecto e enquanto símbolo. Satisfaz-me o toque do papel impresso e da fímbria esfarelada daquelas edições mais antigas como as da Lello, que ainda pedem o corta-papéis. Inebria-me o cheiro de um calhamaço que esperou anos por ser aberto, uma mistura de tinta, couro e tempo passado. Encontrar-me-ão em livrarias, passeando-me lentamente ao longo de escaparates e estantes, a cabeça inclinada para ler os títulos, procurando tesouros ocultos. Desenvolvi, com os livros, uma relação química: compro por ter gostado de um título, de uma capa, de uma frase numa página aberta ao acaso. Algo muito parecido com o amor por uma mulher, que pode durar uma vida inteira só por causa de um primeiro sorriso. Não é a mim que apanham com um “e-book”.


Boas lojas de livros podem ser anárquicas, como foi a Buchholz em Lisboa ou ainda o é a Foyles de Londres, em Charing Cross, ou maciças, tal a FNAC da Avenue de Ternes em Paris, que pouco tem a ver com a loja de electrodomésticos com o mesmo nome que encontramos no Colombo. Ou pequenos jardins, de rosas seguras, como a Bulhosa das Amoreiras ou a livraria do IFP na Luís Bívar. Também obras de arte: a Lello do Porto, desafiando em estatura a fronteira Torre dos Clérigos. Ou armazéns recônditos como os alfarrabistas que se vão aguentando no Carmo e na Trindade. Em todas me sinto no aconchego de uma casa, como também ele se sentia.


Ora isto de algum sítio vem. Não sei se dos genes ou se daqueles domingos em que, uma vez por ano, o ajudava na verificação da biblioteca caseira. Ele, alcandorado num escadote, puxava volume a volume das estantes, abria a capa, ditava-me o número que inscrevera na marca do carimbo que todos os seus livros tinham. Eu, sentado cá em baixo, os pés sem chegar ao chão, marcava com uma cruz o título correspondente, num caderno de linhas. De vez em quanto parava e lia-me um parágrafo em voz alta, falava-me desse livro ou do seu autor. Deste modo fui ouvindo dizer, como se fossem visita lá de casa, de Malaparte e de Manuel de Mello, de Oliveira Martins e de Dos Passos, de Thomas Mann e de Graham Greene. E eu, um miúdo preguiçoso para ler, assim comecei por gostar de livros, ainda antes de apreciar a leitura.


Outras coisas não me conseguiu transmitir. Lia depressa, fluido, concentrado, quase voraz. Conseguia despachar três exemplares da Vampiro ou da Argonauta numa tarde de folga. Tinha apetites, por estilos, por autores. Viveu uma fase de neo-realismo italiano e empinou doses fartas de Pavese e de Vittorini. Apaixonou-se por Ross Mac Donald, um autor americano de “thrillers”, e foi a obra completa quase toda de seguida, à medida que os foi encontrando pelas livrarias, que não estavam editados em Portugal e a Amazon ainda não existia.


Admitia uma clara preferência por prosa, pela história, pelo testemunho político. Fascinava-o o período da segunda guerra, ele que nasceu em trinta e oito e que trabalhou depois numa Alemanha onde ainda eram visíveis, nas pessoas e nas pedras, as marcas do desastre. A este tema correspondia uma estante inteira, soberbamente encadernada a vermelho e negro. Mas podíamos também encontrar por lá espalhada bastante poesia, alguma filosofia, vestígios de ciências sociais. Recordo-me, já adulto, de me deparar numa prateleira mais alta com Tocqueville e Freud e de me perguntar se ele lera aquilo. Fizera-o, de facto.


De entre todos os autores da sua vasta colecção, nutria o amor mais profundo pelos grandes da nossa língua: Eça e Ramalho, Camilo, Júlio Dinis, o padre António Vieira, os diversos Fernando Pessoa, Aquilino. Citava-os com frequência e a propósito. “Como homem que devera e pagara”, “favas destas nem em Paris”, “malhas que o Império tece”, “que ferro!” e outras que tal povoam a memória que dele tenho. Não descurava, igualmente, os bons cultores que o português teve no Brasil: Machado de Assis, Jorge Amado, Erico Veríssimo e Graciliano Ramos, este último um dos que mais considerava. E, do seu século, Torga, Redol, Ferreira de Castro, José Régio, Cardoso Pires, José Rodrigues Miguéis e, este já com alguma reserva, Lobo Antunes.



Três mil livros depois, ao chegar ao ocaso da vida, não seria um académico, nem um literato, mas sim um homem culto, epíteto que só as páginas dobradas conferem e que os canudos universitários não proporcionam.


Na última viagem para o hospital, insistiu em levar uns volumes antigos que comprara num alfarrabista, mandara restaurar e encadernar e acabara de receber: “O sargento-mor de Villar”, de Arnaldo Gama, e uma biografia de Bocage por Rocha Martins. Não percebi se ainda pensava poder lê-los ou se os queria simplesmente à mão. Mas se o Paraíso existir, deverá ser como o sonhou Jorge Luís Borges: uma espécie de biblioteca. E ele lá estará, acabando de ler essas duas obras que o acompanharam na derradeira hora, sentado num cadeirão azul, cercado de estantes altas e lombadas de cabedal.