Wednesday, February 18, 2009

Remissões

Dois "links" a propósito para "posts" no blog Mataspeak, onde ele já foi tema de conversa.

http://mataspeak.blogspot.com/2008/02/o-lugar-ao-lado.html

e

http://mataspeak.blogspot.com/2008/05/my-old-man.html

Thursday, February 5, 2009

Os cromos

Pois naquele tempo vendiam-se cromos da bola ricos e cromos da bola pobres.

Estes, os pobres, até mais para o paupérrimo: tiras de seis centímetros de altura por pouco mais de dois de largo, com uma fotografia mal focada ou até tremida, quase sempre deficientemente impressa, montada sobre um fundo monocromático baço que contrastasse com o equipamento. Todas as figuras se empertigavam na mesma pose: de pé, com a trapeira ao lado da bota ou na mão, muito direitos que a largura do cromo não chegava para grandes movimentos. De um ano para o outro, se algum jogador se transferia para outro clube, o editor pintava o novo equipamento por cima da fotografia antiga, sem grandes preocupações de rigor. Para cada equipa, só dezasseis jogadores, para caberem todos numa página da caderneta.

Os cromos ricos tinham mais do dobro do tamanho, boas chapas tiradas com as bancadas do clube em pano de fundo e jogadores em poses variadas. Vinha o plantel todo, o que dava uma caderneta mais grossa e difícil de completar. Vendiam-se em carteiras de três, não me recordo por quantos tostões, mas tostões suficientes para serem um luxo só justificável por uma boa nota na escola.

Hoje, os cromos da bola, por comparação, são milionários. Cada carteira oferece seis. Para facilitar, autocolantes. As cadernetas, em papel acetinado e colorido, vêm multilingues para servirem praticamente toda a União Europeia. Pode-se encomendar, por via postal, os números em falta. Na altura, se quiséssemos acabar as colecções, tínhamos que cumprir todos os dias, no intervalo para recreio, o ritual da troca de repetidos. As figuras repetidas podiam ser uma tragédia económica: certa vez, numa única carteira que esgotou logo o magro pecúlio que levara para a tabacaria, saíram-me três exemplares do terceiro guarda-redes do Atlético. O olhar de desalento que devo ter exibido comoveu o tabaqueiro, normalmente severo, que me ofereceu nova carteira para reparar o rombo. À época, para terminar a colecção, só no Rossio, junto aos pilares da entrada da estação, onde fulanos com ar circunspecto faziam “trading” de cromos, comprando barato e vendendo caro.

Colar as imagens na caderneta requeria habilidade de trabalhos manuais. As colas disponíveis não prestavam: ou a Cisne branca, uma pasta infame que endurecia que nem pedra à segunda utilização, bloqueando a espátula, ou a Cisne líquida, num pote com uma tampa de enroscar com pincel agarrado, que rapidamente borrava tudo o que apanhasse pela frente num rasto peganhento que acabava fatalmente nas mãos e nas roupas.

O futebol que os cromos retratavam também diferia muito do de agora. Havia muitos mais portugueses, com patronímicos de cepa tradicional como Pavão, Rodrigues ou Henriques, em vez de “petits noms” como Deco ou Dani. Os jogadores ficavam uma vida inteira no mesmo clube. O Benfica ganhava muito, o Sporting um pouco, os outros nada. O Porto não passava ainda de um Belenenses do norte. O futebol praticava-se sobretudo a sul e especialmente em Lisboa e ao redor, onde residia a força industrial do país. Os clubes de bairro da capital, como o Atlético e o Oriental, ainda sobreviviam pela primeira divisão, como na altura se chamava. Fábricas como a CUF ou a Riopele conseguiam manter equipas a esse nível. Na outra banda, o Barreirense tinha dinheiro para contratar internacionais brasileiros. Farense e União de Tomar, entretanto falidos e semi-desaparecidos, nunca baixavam à segunda. Na Académica, ainda estudavam para doutor.


Foi neste Portugal de cromos e bola como já não há que um colega de primária, andaria eu pelos oito anos, me propôs um negócio da China: a aquisição de uma caderneta de cromos pobres, semi-preenchida, por um dado preço que não me ficou na memória. Como na altura se pedia autorização à parentela antes de concluir este género de negócios, assim fiz. Levei um não categórico do meu pai. “Nem pensar. Qual é o sentido de comprar uma caderneta velha? Isso é dinheiro deitado à rua!” Tive que me conformar com a nega e comunicar ao meu amigo que não havia acordo, porque o meu pai não deixava. Ainda fui xingado. Fiquei chateado.

No dia seguinte, tive aula de ginástica. Praticava a modalidade no Sporting, com um professor de pêra, muito prestigiado por ter um programa de televisão dominical em que algumas crianças executavam uns pinos e corriam à volta do plinto, num estúdio mínimo. Nunca fui entusiasta deste desporto e o jeito não me favorecia. Pendurava-me no espaldar, corria e perfilava-me e pouco mais. O mestre dividiu-nos em categorias pela perfeição das cambalhotas e eu nunca passei da terceira e última. Dizia ele que eu metia mal a cabeça. Razão suficiente para cambalhotas pouco sucedidas, tendo hoje a concordar.

As classes tinham lugar num ginásio debaixo da arquibancada do velho Alvalade e o meu pai ia recolher-me à saída, junto à escadaria das portas poente. Quando entrei para o carro, ele não arrancou logo: “tenho aqui uma coisa para ti”. Pendurei-me no banco da frente e ele meteu-me na mão uma dúzia de cromos, para as minhas mãozinhas de oito anos literalmente uma mão cheia, e logo dos cromos ricos. Fiquei extasiado – “ena!” – diante daquele presente inesperado que compensava o mau passo do frustrado arranjo do dia anterior. Abri as figurinhas em leque enquanto analisava a leva que me coubera em sorte. Aparentemente, saíra-me só um jogador conhecido:

- Este é o Arnaldo, da CUF – resumi.
- Tens aqui também o Jacinto João, do Setúbal. E olha o Jaime Graça.
- E o Wagner do Sporting, não tinha visto!
- E aqui não tens o Damas?

Era o Damas, realmente, de fato treino verde e boné. Não percebi como me podia ter escapado, na primeira leitura, o guarda-redes do meu clube, um dos jogadores que mais admirava. Afinal, a mão-cheia parecia mais cheia do que ao início parecia.

- Não tinha reparado que também vinha aqui um do Belenenses – admirei-me.
- E aqui outro: o Pietra. E olha ali o Cubillas do Porto. E o Benje, do Farense.

De facto, o Benje, único guarda-redes negro de todo o campeonato, passara-me desapercebido. Comecei a ficar baralhado. Não entendia de onde estava a vir aquela malta toda. O meu pai continuava:

- Já viste aqui o Eusébio? E o Matine? E o Humberto Coelho. E olha aqui o Manaca…
- Tão aqui o Dinis e o Yazalde!

A minha mão já não segurava tanto papel. E continuavam a aparecer vedetas e mais vedetas, cada vez em maior número. A equipa leonina já bem representada. O próprio Yazalde, o grande Chirola que aviava aos três e quatro por jogo, como cereja em cima do bolo, logo no meio do molhe. Eu, confuso com o que se estava a passar, perguntava:

- Não percebo. Como é que eu não vi logo o Yazalde?
- Devia estar colado a outro. Arruma lá isso que vamos comprar a caderneta.

Deliciado com mais esta boa nova, encostei-me cá atrás, repassando o meu molhe de cromos, e de cromos ricos! Até hoje, perdura em mim uma memória dupla sobre aquela tarde: a alegria intensa da surpresa e a confusão perante o processo, a estranheza sentida ao ver craques e mais craques a encavalitar-se na minha mão. Durante mais alguns anos, ainda me intrigava como fora possível aquele milagre de Canã da multiplicação dos cromos. Sei agora, claro, que ele comprara as carteiras e que as abrira, que ordenara os jogadores de modo a provocar aquele efeito de crescendo, que os guardara no bolso e os fora discretamente acrescentando, criando um momento mágico, breve mas eterno. Sei agora também que tanto cromo constituía para ele, à época, um pequeno sacrifício, que pagou em turnos e enxaquecas.


Porque escolhi uma história tão leve como primeira memória neste blogue? Porque diz muito sobre o homem que foi buscar o seu filho. E porque foi a primeira que me veio à cabeça, o que também tem o seu significado. Significado que só entendi totalmente quando anos depois vi na parede da aula do meu filho, no jardim infantil, um trabalho colectivo para o Dia do Pai, em que cada criança completara a frase “Gosto do meu pai porque…”. A que me tocava dizia: “… porque faz legos difíceis.”

Construir legos difíceis, encher uma manita de cromos ricos, em suma, maravilhar, eis acções que dão significado ao que andamos por cá a fazer no tempo que nos está reservado. Poucos o percebem, prisioneiros que são da sua propria imagem de seriedade.

Felizmente, nem todos assim: Henrique IV, monarca sábio, o rei que acabou com as guerras de religião em França, entendeu-o bem quando recebeu o embaixador de Espanha de gatas, montado por um dos filhos. Perante a estranheza do diplomata, perguntou-lhe se era pai. Quando este respondeu que sim, o monarca retorquiu: “Então, compreende certamente.”

Wednesday, February 4, 2009

Prefácio

Um dia deu-me o sono como a qualquer criança.
Fechei os olhos e dormi.

Alberto Caeiro

Este blogue foi criado “in memoriam” de Américo Carlos Pereira da Mata, meu pai, nascido em Vila Nova da Barquinha em 23 de Maio de 1938 e falecido em Lisboa a 25 do mesmo mês em 2008: um homem que vale a pena ser lembrado. Neste sítio, deixarei histórias que ilustram a memória que dele me ficou. Neste sítio irei repassando e repisando as muitas saudades, que por muito que as mate não se deixam morrer.

Neste sítio contrariarei –contrariaremos - um dos poetas que ele mais apreciava, que escreveu, no mesmo poema de onde retirei a epígrafe:

“Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples
Tem só duas datas — a da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra coisa todos os dias são meus.”

Como o meu é apenas um dos ângulos pelos quais ele deve ser recordado, esta página fica aberta a contribuições. Os familiares e amigos que aqui queiram publicar podem remeter os seus textos para o endereço cmspmata@gmail.com.

O título deste blogue, “La gloire de mon père”, roubei-o sem pudor ao romance autobiográfico de Marcel Pagnol, que começa com a seguinte, belíssima, frase: “Je suis né dans la ville d'Aubagne, sous le Garlaban couronné de chèvres, au temps des derniers chevriers”. É o título que eu queria e o título que ele merece e o facto de estar ocupado desde 1957 pelo bom do Pagnol não tinha por que me intimidar.