Saturday, April 25, 2009

Três dedicatórias

No seu derradeiro Novembro, almoçámos pela última vez frente a frente, no Varanda da União, excelente cozinha portuguesa num andar de cobertura, ao fim da rua Castilho. Por essa altura, já os resultados dos exames e as inquietações dos clínicos lançavam nuvens escuras sobre o seu estado de espírito. Mas não sobre o seu humor: para o provar contou-me uma história antiga e picaresca, com um colega de trabalho enrascado numa situação complicada no emprego, que terminava com o dito a proclamar:

- Em resumo, estou f…

E completava, com um sorriso breve:

- E assim estou eu.

Eu retorquia-lhe que não, que tivesse calma, que ainda havia muito jogo. Ele fez-me a vontade e falámos de outras coisas diante de um cabrito (dos feitos dos netos, da sua actividade associativa, da bondade do vinho e do serviço). Mas, percebo agora, intimamente ele já sabia.

Um mês depois, ainda o pior não se tinha manifestado, passámos o jantar de consoada em sua casa. Notei aí que ele tivera um cuidado especial na elaboração dessa noite. Para além da excelente mesa de iguarias que açambarcava a sala, comprara postas de um bacalhau caríssimo, um primeiro entre pares do fiel amigo, tudo orçado em duzentos euros. Os miúdos, brincando com a situação, reclamavam que lhes fosse servido o bacalhau dos quarenta contos.

Mais notei quando, já quase terminada a tradicional entrega dos embrulhos, ele anunciou uma novidade: uma prenda “só dele” (“não minha e da avó, só minha!”) para filhos e netos. Cada uma ostentava uma dedicatória diferente. Ao lê-las, imediatamente as senti como escritas por um homem que queria deixar uma marca, um legado, que podia já não ter oportunidade de voltar a dizer aquilo que queria.

Ao meu filho mais novo, calhou-lhe “A cidade e as serras”. Na primeira folha branca escrevera:

“Quando daqui a muitos anos tiveres a tua Biblioteca recheada de bons livros, quero que este figure nela com uma lembrança do avô Mata. Bom Natal!”

Ao mais velho, que ele apelidava morgado, ofereceu um “Amor de perdição”, que lavrava:

“Fernando Pessoa disse que a sua Pátria é a língua portuguesa. Aprende também tu a amá-la através deste belo livro. Bom Natal. Avô Mata.”

A mim, deu-me o DVD do filme “Gloria”. No interior, colocara um rectângulo de papel com a sua fotografia e, por baixo:

“Este é um dos filmes da minha vida. Não me lembro de quando o vi, mas foi de certeza há muitos anos. Para mim o seu grande valor, para além da magnífica realização de John Cassavetes e da soberba interpretação de Gena Rowlands, é o sublinhar do respeito que se deve ter pela palavra dada, mesmo que isso signifique ter de cumprir uma tarefa que se abomina.”

Já de madrugada, no caminho para casa, perguntei aos rapazes se tinham percebido o que o avô lhes ofertara. Responderam em coro: “Sim! Um livro!” A que eu respondi: “Não, burros, uma dedicatória.”

Vejo, nestas três dedicatórias, o resumo de uma vida, a síntese de um homem, assinada pelo próprio. O amor pelos livros, o amor pela nossa língua, o amor pela palavra de honra. Com estes três vectores, pode-se construir o espaço que ele encheu durante a sua passagem entre nós. E quando leio qualquer uma delas, percebo com clareza a falta que ele me faz.