O dia em que o meu pai mais me faltou, dos 1733 dias que já
passaram desde que começou a fazer muita falta todos os dias, foi o dia em que chegou
a carta da Universidade de Lovaina informando que o meu filho mais velho fora
admitido no curso de medicina.
Estávamos em Agosto na nossa praia dos Aivados, de férias.
Fora a minha sogra que passara por nossa casa em Lisboa para ver o correio e
que ligara a dar a notícia, com um tremor triste na voz de quem via o neto
dilecto partir durante anos para o estrangeiro. A notícia correu o areal e
vieram os amigos e sucederam-se as felicitações e os abraços. Eu, inchado,
exultava. Só que de repente olhei com atenção para a mesa do meu orgulho e
reparei no cadeirão à cabeceira, vazio de quem mais faltava. De repente, os elogios
e parabéns dos outros fundiram-se numa cacofonia vaga, que o fragor das ondas
contra a areia abafava, e de entre toda aquela gente, de toda aquela boa gente,
eu só conseguia ver quem na verdade lá não estava. De repente, senti a
necessidade de me afastar e de me sentar à beira de água mordendo o lábio,
contemplando o vácuo que de repente se abrira no meu peito com um estrondo
discreto.
Nesse dia senti a satisfação de ter pago a primeira
prestação de uma dívida com trinta anos, que ninguém me cobrara mas que nem por
isso era menos devida. Nesse dia, sofri a dor de ele não ter visto que eu tinha
cumprido.
Quando penso nestas coisas vem-me quase sempre à memória outra
memória, a seguinte memória, que por acaso ou talvez não por acaso se
atravessou ontem outra vez na minha mente quando saía do trabalho. Muitos anos
antes, no primeiro dia em que esse meu filho frequentou o jardim infantil, quando
chegámos às oito da manhã com o rapaz ao colo, a chorar contrariado pela
novidade, ele lá estava com a minha mãe, numa manhã que recordo muito fria de
Setembro, esperando-nos impecável de fato e gravata, aprumado, quase marcial,
só para dar um beijo na face do neto no princípio de um longo caminho. Tenho essa
lembrança gravada como que a estilete, desse fato e gravata que pareciam uma
ilha imponente, um pico vertical imperturbado pela agitação do mar de cores, de
correrias, de reencontros, de gente atrasada arrastando crianças pela mão, de
mais velhos a correr de mochila às costas, de gritos e risos rasgados de
repente pelo toque frenético da sineta que anunciava a primeira aula.
Isto era muito dele, este apego ao símbolo, à importância do
momento que marca, que merece alguma solenidade e a diferença de um fato e
gravata.
Quando me lembro deste momento, quando olho para o caminho
que percorri na minha vida ou aquele que os meus filhos agora encetaram e
comparo com o dele, quando revejo como foi fácil, sinto-me como um corredor de
estafetas a quem tivessem calhado uns cem metros suaves, em terreno plano e
pista de tartan, por entre bancadas de público, e que recebesse o testemunho de
um companheiro que teve que correr uma maratona e meia por montes e vales, em
terreno enlameado e traiçoeiro, longe dos olhares e das luzes e que ainda assim
teve forças para acompanhar mais uns metros o colega para que ele não esmorecesse.
Sendo justo, sinto a mesma pequenez que sinto quando hoje visito a casa que foi
sua e diante daquelas paredes forradas a milhares de livros imagino um homem
enorme fumando e lendo História ou Poesia ou um bom Eça, fazendo tempo para
pegar no turno da noite onde iria angariar mais uns centímetros quadrados do
tapete vermelho que a vida me estendeu por diante.
O cientista sério sabe que, por muito inebriante que seja a
sua descoberta e o seu avanço, deve ter a humildade intelectual de constatar
que o seu contributo é pequeno, e só possível porque antes dele houve Newtons e
Gausses e Einsteins e Diracs que amontoaram grande parte do monte onde ele
agora acrescenta poeiras com o sentimento de quem cria montanhas. Do mesmo modo
nós, nos nossos dia-a-dias particulares, devemos com reverência lembrar-nos que
estamos aos ombros de gigantes, que em repartições, oficinas ou aradas, de
enxada ou serra ou caneta, deixaram feito quase tudo o que tinha que ser feito.
Por isso, no dia em que o meu filho teve a sua primeira aula
em Lovaina, à hora em que calculei estivesse a caminho do anfiteatro,
enviei-lhe um SMS desejando-lhe boa sorte e pedindo-lhe que nunca em cada
momento da sua vida profissional esquecesse que o avô esperara ao frio, de fato
e gravata, para lhe dar um beijo no primeiro dia de aulas.