Saturday, February 23, 2013

Standing on the shoulders of giants



O dia em que o meu pai mais me faltou, dos 1733 dias que já passaram desde que começou a fazer muita falta todos os dias, foi o dia em que chegou a carta da Universidade de Lovaina informando que o meu filho mais velho fora admitido no curso de medicina.

Estávamos em Agosto na nossa praia dos Aivados, de férias. Fora a minha sogra que passara por nossa casa em Lisboa para ver o correio e que ligara a dar a notícia, com um tremor triste na voz de quem via o neto dilecto partir durante anos para o estrangeiro. A notícia correu o areal e vieram os amigos e sucederam-se as felicitações e os abraços. Eu, inchado, exultava. Só que de repente olhei com atenção para a mesa do meu orgulho e reparei no cadeirão à cabeceira, vazio de quem mais faltava. De repente, os elogios e parabéns dos outros fundiram-se numa cacofonia vaga, que o fragor das ondas contra a areia abafava, e de entre toda aquela gente, de toda aquela boa gente, eu só conseguia ver quem na verdade lá não estava. De repente, senti a necessidade de me afastar e de me sentar à beira de água mordendo o lábio, contemplando o vácuo que de repente se abrira no meu peito com um estrondo discreto.

Nesse dia senti a satisfação de ter pago a primeira prestação de uma dívida com trinta anos, que ninguém me cobrara mas que nem por isso era menos devida. Nesse dia, sofri a dor de ele não ter visto que eu tinha cumprido.

Quando penso nestas coisas vem-me quase sempre à memória outra memória, a seguinte memória, que por acaso ou talvez não por acaso se atravessou ontem outra vez na minha mente quando saía do trabalho. Muitos anos antes, no primeiro dia em que esse meu filho frequentou o jardim infantil, quando chegámos às oito da manhã com o rapaz ao colo, a chorar contrariado pela novidade, ele lá estava com a minha mãe, numa manhã que recordo muito fria de Setembro, esperando-nos impecável de fato e gravata, aprumado, quase marcial, só para dar um beijo na face do neto no princípio de um longo caminho. Tenho essa lembrança gravada como que a estilete, desse fato e gravata que pareciam uma ilha imponente, um pico vertical imperturbado pela agitação do mar de cores, de correrias, de reencontros, de gente atrasada arrastando crianças pela mão, de mais velhos a correr de mochila às costas, de gritos e risos rasgados de repente pelo toque frenético da sineta que anunciava a primeira aula.

Isto era muito dele, este apego ao símbolo, à importância do momento que marca, que merece alguma solenidade e a diferença de um fato e gravata.

Quando me lembro deste momento, quando olho para o caminho que percorri na minha vida ou aquele que os meus filhos agora encetaram e comparo com o dele, quando revejo como foi fácil, sinto-me como um corredor de estafetas a quem tivessem calhado uns cem metros suaves, em terreno plano e pista de tartan, por entre bancadas de público, e que recebesse o testemunho de um companheiro que teve que correr uma maratona e meia por montes e vales, em terreno enlameado e traiçoeiro, longe dos olhares e das luzes e que ainda assim teve forças para acompanhar mais uns metros o colega para que ele não esmorecesse. Sendo justo, sinto a mesma pequenez que sinto quando hoje visito a casa que foi sua e diante daquelas paredes forradas a milhares de livros imagino um homem enorme fumando e lendo História ou Poesia ou um bom Eça, fazendo tempo para pegar no turno da noite onde iria angariar mais uns centímetros quadrados do tapete vermelho que a vida me estendeu por diante.

O cientista sério sabe que, por muito inebriante que seja a sua descoberta e o seu avanço, deve ter a humildade intelectual de constatar que o seu contributo é pequeno, e só possível porque antes dele houve Newtons e Gausses e Einsteins e Diracs que amontoaram grande parte do monte onde ele agora acrescenta poeiras com o sentimento de quem cria montanhas. Do mesmo modo nós, nos nossos dia-a-dias particulares, devemos com reverência lembrar-nos que estamos aos ombros de gigantes, que em repartições, oficinas ou aradas, de enxada ou serra ou caneta, deixaram feito quase tudo o que tinha que ser feito.

Por isso, no dia em que o meu filho teve a sua primeira aula em Lovaina, à hora em que calculei estivesse a caminho do anfiteatro, enviei-lhe um SMS desejando-lhe boa sorte e pedindo-lhe que nunca em cada momento da sua vida profissional esquecesse que o avô esperara ao frio, de fato e gravata, para lhe dar um beijo no primeiro dia de aulas.