tag:blogger.com,1999:blog-44292863997440262342024-02-20T18:51:50.592-08:00La gloire de mon pèreCMatahttp://www.blogger.com/profile/12803581531108411574noreply@blogger.comBlogger9125tag:blogger.com,1999:blog-4429286399744026234.post-45466474284412506782014-06-08T11:25:00.002-07:002014-06-09T05:53:32.065-07:00Dicionário Ameriquês-Português<!--[if gte mso 9]><xml>
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<br />
<div class="MsoNormal">
Dia vinte e cinco último passaram seis anos e continuam a
ressoar na minha memória as suas frases favoritas. Tiradas que ele soltava
recorrente e enfaticamente, para matizar com uma pincelada de humor uma
conversa que ouvia em silêncio, para lhe perverter o sentido com o ferrete da
ironia, para dar por terminado um papo que já se alongasse às voltas sobre si
mesmo. Tantas vezes me espanejou o pó da cabeça com estas citações que por
vezes me surpreendo, eu próprio, a repeti-las.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Aqui vai como é de moda um “top ten”, contextualizado e
comentado, numerado mas não – claro – ordenado.</div>
<div class="MsoNormal">
<br />
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
1) Maria! Não me mates que sou tua mãe!</div>
<div class="MsoListParagraph" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-indent: -18.0pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Esta era solta quando à sua volta lhe vinham com o relato
exagerado de algum dramalhão familiar ou, mais genericamente, com a descrição
de uma sacanice suave mas torpe que fulano praticara sobre beltrano.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Maria! Não me mates que sou tua mãe!” é o título de um
folhetim de cordel de Camilo Castelo Branco, de curtas dez páginas, que
descreve o matricídio de uma viúva por sua filha a mando de um chuleco
novecentista. Camilo teve fases da vida em que escreveu a metro e a pataco, por
sobrevivência, e este curto conto macabro deve ser dessa lavra e foi por ele
publicado anónimo e em edição de autor, em 1848.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
O texto é um tide inacreditável aos olhos dos nossos tempos.
Oscila entre um realismo cru na descrição dos factos, com diálogos que revelam
a total ausência de escrúpulos dos culpados e parágrafos descrevendo a
mutilação e o despedaçar do corpo, e um tom exageradamente moralizante no
comentário. O longo sub-título diz tudo, aliás:</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Meditação sobre o espantoso crime acontecido em Lisboa: uma
filha que mata e despedaça sua mãe. Mandada imprimir por um mendigo, que foi
lançado fora do seu convento, e anda pedindo esmolas pela porta. Oferecida aos
pais de família e aqueles que acreditam em Deus.”</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Julgo que Camilo só podia estar a gozar com os pobres pais
de família burgueses que lhe compravam o folheto e podiam assim desencardir a
sua consciência do que lá pairasse, escandalizando-se com os horrores da vida e
dos costumes dessa plebe que habitava a Travessa das Freiras nº 17 e as
vizinhanças de tão soturno tugúrio. </div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Como Camilo pensaria também meu pai, que esgrimia este
título sem qualquer intenção de parecer sério. Poucos anos antes de morrer,
encontrou numa livraria o “Maria! Não me mates que sou tua mãe!”, reeditado em
2001 pela Nova Ática, e teve a paternal amabilidade de me vir cá a casa trazer
um exemplar, talvez para que eu percebesse.</div>
<div class="MsoNormal">
<br />
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="mso-bidi-font-family: Calibri; mso-bidi-theme-font: minor-latin;"><span style="mso-list: Ignore;">2) <span style="font: 7.0pt "Times New Roman";"> </span></span></span>Malhas que o império tece</div>
<div class="MsoListParagraph" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-indent: -18.0pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Usava amiúde este célebre verso de Pessoa como comentário
conclusivo quando lhe contavam qualquer história que tivesse um final triste ou
fatídico. Muitas vezes complementava com os dois versos seguintes (“jaz morto e
apodrece/o menino de sua mãe”).</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
É possivelmente a única tirada desta lista que pronunciava
de modo sério, como que ciente do absurdo estrutural da vida, que este poema
superiormente descreve. Ao fim e ao cabo, e como com ele aprendi, da vida ou
nos rimos ou nos inquietamos, sem outro meio termo que não um fingimento.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Grande apreciador dos vários Pessoas, citava-os com
abundância e a-propósito. “Dos Lloyds Georges da Babilónia/ Não reza a História
nada”, para explicar a queda em desgraça de um político; várias partes do
“Mostrengo”, para nos incentivar a ultrapassar-nos; “Mais que isto/É Jesus
Cristo/Que não sabia nada de Finanças/Nem consta que tivesse biblioteca”,
quando nos queria dizer que a petulância dos que julgam que sabem não é mais do
que mania; e assim por diante. Recordo ser criança e ele me falar no Esteves
sem metafísica a acenar para o dono da Tabacaria.</div>
<div class="MsoNormal">
<br />
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
3) Toma arsénico, João!</div>
<div class="MsoListParagraph" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-indent: -18.0pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Na sua versão completa, que também ocorria: “Toma
arsénico, João; que teima a tua em não tomar arsénico”. Estas frases usava-as
ao princípio quando alguém lá em casa queria fugir a um tratamento prescrito,
mas com o tempo tornaram-se de aplicação para qualquer situação absurda ou que
ele quisesse desmontar, um “free-for-all” de galhofa que lhe arrancava um largo
sorriso. Creio que já vinha de longe porque tenho uma certa memória de meu avô
paterno também a proferir.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
A tirada aparece no capítulo XXI das “Pupilas do Senhor
Reitor”, de Júlio Dinis. Daniel, o jovem médico, aparece em casa do tendeiro
João da Esquina em substituição do velho médico João Semana. Dá-se um choque
geracional que Júlio Dinis, mestre do diálogo, descreve com suave humor. No
final da consulta, Daniel recomenda um medicamento contendo arsénico, o que
leva a novo choque com o tendeiro, desconfiado com a possibilidade de ser envenenado.
A partir daí, a mulher do tendeiro, a Sra. Teresa, que simpatiza com o jovem
médico, vai passar a moer o juízo ao marido mandando-lhe tomar arsénico,
repetindo a frase a cada página, ironicamente parecendo que lhe deseja a morte.
Assim nasce uma frase ilógica.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<br />
4) Favas destas nem em Paris, Melchior amigo!</div>
<div class="MsoListParagraph" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-indent: -18.0pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Na realidade, a frase como Eça a escreveu em “A cidade e as
serras” é “Deste arroz com fava nem em Paris, Melchior amigo”.<span style="mso-spacerun: yes;"> </span>O meu pai usava-a para elogiar qualquer prato
saboroso e não apenas favas.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
A frase é dirigida por Jacinto ao seu caseiro, na sua primeira
refeição em Portugal depois da sua aventurosa chegada aos domínios que herdara nas
serras durienses, em Tormes, e que visita pela primeira vez na vida, vindo de
Paris onde levava uma existência de luxos vãos junto da élite francesa. Eça
adianta-nos que em Paris Jacinto sempre abominara favas, mas que “tentou
todavia uma garfada tímida – e de novo aqueles seus olhos, que o pessimismo
enevoara, luziram, procurando os meus (os do narrador Zé Fernandes, na
realidade o próprio Eça)”.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Este romance, “As cidades e as serras”, é central nas nossas
vidas, na minha e na dele. Foi dos primeiros livros a sério que li, pelos meus
treze anos. O meu pai emprestou-me o seu exemplar, mandado por ele encadernar a
couro azul, como fazia gosto em relação a todos os seus Eças, e eu devolvi-o
todo esgatanhado, o que o desconsolou um bocado. Julgo que o levou à conta de
investimento e espero que se tenha sentido compensado. Foi também um dos títulos
que escolheu, sentindo chegar o fim, para oferecer aos netos no seu último
Natal, como se uma carta de adeus fosse.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Mas este livro é também único em Eça. Num prato da balança
está toda a sua obra, crítica feroz e tremendamente lúcida da pequenez burguesa
de Portugal, dos seus defeitos e costumes – crítica que encanta pelo esplendor
da escrita e aterroriza pela surpresa da sua aplicabilidade, tal e qual, ao país
de hoje. No outro prato, pesando tanto como a vintena de volumes que se
amontoam do outro lado, arrastando lentamente para si o fiel da balança, está “A
cidade e as serras”. Neste romance, póstumo, Eça deixa-nos como testamento uma visão
positiva, uma porta de saída para essa pequenez que criticara mesmo nos grandes,
um final feliz possível para a vida que a inteligência nos sugere como absurda,
uma vitória da essência e da eternidade sobre a aparência fugaz que tantas
vezes por fraqueza idolatramos. É verdade que a essência que Eça louva, esse “palácio
da Grã-ventura”, é uma essência bucólica, rural, senhorial, uma Arcádia nas
serranias portuguesas e é por isso uma ideia reaccionária. Mas Eça, o homem do
mundo, sempre foi muito lá no fundo um moralista, um desancador incomformado do
“pútrido rebotalho da Civilização” e por isso não admira que procure uma saída
no que é oposto e não apenas no que é diferente.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
E a frase das favas, que meu pai repetia, é o momento-chave
em “As cidades e as serras”: relata o instante transformacional em que a
crisálida do Jacinto parisiense, pálido, aborrecido com tudo, preso na teia dos
hábitos mundanos, se começa a esboroar para dar lugar a um Homem Novo, um
Jacinto refeito mas ancestral, sadio dos ares da serra, homem de família
superior aos vícios das vielas, enfim ser completo e feliz.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
O meu pai fez na sua vida um trajecto cruzado com o de Jacinto.
Jacinto vai da cidade para a serra, o meu pai da vila de província para a
cidade. Talvez por isso nunca o senti inteiramente um lisboeta como eu sou.
Sempre intuí haver lá dentro um bocadinho seu de serra, uma aragem fresca de
Tejo soprando nas varas verdes de um canavial. Provavelmente por isso pediu
para lá ficar, na sua Tormes do Cais Pombeiro. </div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<br />
5) Liberta-te escravo, e solta os cães!</div>
<div class="MsoListParagraph" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-indent: -18.0pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Dirigia-nos esta exclamação, sugerindo-nos desobediência, quando
nos queixávamos de ter que cumprir contrariados alguma obrigação, especialmente
se sentisse que era um daqueles deveres sociais com mais de grilheta do que de
sentido.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Só depois da sua morte descobri a origem desta frase, quando
vi o filme “A ultrapassagem”, de Dino Risi, com Vittorio Gassman e Jean-Louis
Trintignant, fita de 1962. </div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
No início do filme, numa Roma desertada pelo feriado de 15
de Agosto, Bruno Cortona (Gassman), um malandreco “nullafacente” a aproximar os
quarenta anos pára o seu Lancia Aurelia B24 descapotável à procura de um sítio
para telefonar. Mete conversa com Roberto Mariani (Trintignant), um estudante
de direito que ficara em Roma para se preparar para os exames e que estava à
janela do seu andar. Roberto acaba por aceitar a proposta de Bruno para um
passeio de automóvel e assim começa uma viagem pela Toscânia e pela Itália dos
anos de sucesso do pós-guerra, mas ao mesmo tempo uma descida aos infernos em
que a fabulosa interpretação satírica de Gassman não consegue esconder um
prenúncio da tragédia que culminará o filme.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Logo numa das primeiras cenas dessa viagem, quando Bruno e
Roberto circulam a alta velocidade pelas ruas de Roma, Bruno quase atropela um
velhote que levava pela trela vários cães, nitidamente um empregado a passear cães
que não lhe pertencem. Evitando “in extremis” o acidente, Bruno grita para o
homem, sem mostrar remorso:</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
- Liberta-te escravo, e solta os cães!</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Claro que foi uma agradável surpresa descobrir de repente a
frase que tantas vezes lhe ouvira e perceber que com quase meio século de diferença
víramos o mesmo filme: ele um jovem adulto em início de vida familiar, eu a
aproximar os cinquenta e com muito dessa etapa já feita. Não me surpreende que
o filme o tenha marcado. Talvez por momentos lhe tivesse passado pela cabeça que
gostaria de ser Bruno, exuberante e endiabrado, mas na realidade ele era bastante
mais Roberto, observador e temperado. </div>
<div class="MsoNormal">
<br />
<br />
6) Escreve e agora risca por cima.</div>
<div class="MsoListParagraph" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-indent: -18.0pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Esta frase aparece no filme “Um homem tranquilo”, de John
Ford, com John Wayne e Maureen O’Hara, realizado em 1952. Um bom filme sobre um
bom homem, Sean Thornton, que regressa à sua Irlanda natal vindo da América, onde
matara um homem num combate, e que procura uma vida nova. Uma daquelas histórias
leves e penetrantes que nos enxagua a alma e nos reconcilia com o pouco
merecedor género humano.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Neste filme há um personagem que tinha um caderninho onde dizia à mulher que apontasse o nome das pessoas com quem se incompatibilizava.
Ela escrevia e aí ele pedia-lhe “agora risca por cima”. O meu pai repetia
muitas vezes a mesma frase para a minha mãe, nas infrequentes alturas em que se
aborrecia com alguém. Depois esquecia o personagem, se entretanto não perdoasse,
o que até era o mais provável. Perdoar era uma liberdade que ele exercia com
grande liberdade, a começar nos que lhe eram mais próximos, comigo à cabeça.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Este era um dos filmes da vida de meu pai e entendo porquê.
Quando o vi, eu próprio encontrei muitas semelhanças de carácter entre ele e
Thornton, na sua serenidade e na sua ética pessoal. Há tempos comprei o DVD e
ofereci-o nos anos ao meu filho mais novo, referindo-lhe a predilecção do avô e
a minha explicação de porque assim era. Ele viu e depois comentou-me: </div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
- Há parecenças mas há uma diferença: o avô não tinha nenhum
peso na consciência.</div>
<div class="MsoNormal">
<br />
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
7) Venho do Bairro Alto cravadinho de facadas</div>
<div class="MsoListParagraph" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-indent: -18.0pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Suspirava esta quando se sentia cansado das maldades que a
vida ou nós lhe fazíamos, ou enquanto retirava das costas alguma faca concreta,
operação que realizava com aparente facilidade.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Contou-me ele que esta frase fora usada por Mário Soares,
político que ele muito admirava, num discurso no parlamento quando era
primeiro-ministro, julgo que aquando da queda do governo do Bloco Central em
1985, e que Soares a atribuiu a António Sérgio. Não consegui confirmar a parte
do António Sérgio, e a frase que encontrei de Mário Soares é ligeiramente
diferente: “Venho do Bairro Alto cozidinho de facadas”.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Contrariamente a Mário Soares, que não esqueceu certas
facadas, tenho a impressão que no caso dele as facas que tirava das costas iam
directamente para o lixo. Quanto muito pedia a minha mãe que tomasse nota do
nome do apunhalador e que depois riscasse por cima.</div>
<div class="MsoNormal">
<br />
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
8) Não me apontem caminhos!</div>
<div class="MsoListParagraph" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-indent: -18.0pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Usava esta frase, mais até para o final da vida, quando
insistíamos demasiado para que ele fizesse qualquer coisa que não lhe apetecia fazer.
E complementava com um “Não sei para onde vou, sei que não vou por aí!”.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Ora estes últimos são os dois versos finais do “Cântico
Negro”, poema retirado do livro “Poemas de Deus e do Diabo” de José Régio. Já o “Não me
apontem caminhos!” não sei de onde vem. Venha de onde vier, na boca de meu pai
um sempre vinha agarrado aos outros.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Régio é um magnífico poeta, algo esquecido hoje, que meu pai
muito apreciava. Ouvia com gosto a “Toada de Portalegre”, dita em disco por
João Villaret, e repetia-a quase inteira quando calhava, talvez quando soprasse
o vento suão “que enche o sono de pavores, faz febre, esfarela os ossos, e
atira aos desesperados a corda com que se enforcam na trave de algum desvão...”.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
O “Cântico Negro”, esse, acaba por ser uma versão bela e torturada
da lição mais importante que pelo exemplo ou pela palavra me deu para meu
caminho: que fosse livre e que trilhasse o meu <span style="mso-spacerun: yes;"> </span>destino seguindo a luz dos meus – nossos! – valores
e não os dedos apontados dos outros.</div>
<div class="MsoNormal">
<br />
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
9) Soou enfim a trombeta castelhana...</div>
<div class="MsoListParagraph" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-indent: -18.0pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Esta saía-lhe por vezes lá em casa quando alguém se assoava
com vigor excessivo, produzindo um som de buzina, e também pontualmente se
algum acidente mais escatológico ocorresse na sua vizinhança.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
A trombeta castelhana aparece na estância 28 do quarto canto
dos Lusíadas: </div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
“Deu sinal a trombeta Castelhana,<br />
Horrendo, fero, ingente e temeroso;<br />
Ouviu-o o monte Artabro, e Guadiana<br />
Atrás tornou as ondas de medroso.<br />
Ouviu o Douro e a terra Transtagana;<br />
Correu ao mar o Tejo duvidoso;<br />
E as mães que o som terribil escuitaram<br />
Aos peitos os filhinhos apertaram.”</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
O sinal sonoro anuncia a chegada a Aljubarrota das tropas leais
ao rei D. João I de Castela, onde irão levar a tareia do século às mãos do
Mestre de Avis, o futuro D. João I de Portugal, e do condestável Nuno Álvares
Pereira.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
A linha que meu pai repetia é um pouco diferente do verso de
Camões, mas creio que a retirara de um texto mais recente, já do seu século vigésimo, uma
paródia em rima de que tenho uma vaga lembrança de a ter lido com ele.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Desse sinal ou soasse, era em todo o caso a frase que saía
sempre que à sua volte se ouvisse algum som mais inadvertido...</div>
<div class="MsoNormal">
<br />
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
10) Eram piores que inimigos, eram irmãos!</div>
<div class="MsoListParagraph" style="mso-list: l0 level1 lfo1; text-indent: -18.0pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Esta é do Pitigrilli, pseudónimo do escritor italiano Dino
Segre, reputado pelas espírito das suas tiradas. Creio que Pitigrilli se
referia no seu caso mais a irmãos de ideias do que de sangue, mas o meu pai
usou-a bastante para comentar desentendimentos que ocorriam pontualmente entre
mim e o meu irmão, daqueles que há em todas as casas. Usava-a com ironia e não
com severidade, até porque nunca percebi que tivesse uma visão patriacal da
família, de todos atados uns aos outros. Com ele, sempre senti a família como
um local de liberdade, como um espaço em que cada um tinha o seu espaço. Recordo-me
de ele dizer, citando os lugares onde eu e o meu irmão estiveramos em férias no
Verão que terminara: “posso ter um filho na Jugoslávia e outro no Algarve, mas
se pensarmos uns nos outros somos uma família”.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Por isso ainda hoje pensamos e por isso continuamos a sê-lo,
até porque ele está hoje sempre mais perto do que a Jugoslávia então estava longe.
</div>
CMatahttp://www.blogger.com/profile/12803581531108411574noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4429286399744026234.post-86374322639141305872013-02-23T05:01:00.002-08:002013-03-05T16:27:58.315-08:00Standing on the shoulders of giants<!--[if gte mso 9]><xml>
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<br />
<div class="MsoNormal">
O dia em que o meu pai mais me faltou, dos 1733 dias que já
passaram desde que começou a fazer muita falta todos os dias, foi o dia em que chegou
a carta da Universidade de Lovaina informando que o meu filho mais velho fora
admitido no curso de medicina.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Estávamos em Agosto na nossa praia dos Aivados, de férias.
Fora a minha sogra que passara por nossa casa em Lisboa para ver o correio e
que ligara a dar a notícia, com um tremor triste na voz de quem via o neto
dilecto partir durante anos para o estrangeiro. A notícia correu o areal e
vieram os amigos e sucederam-se as felicitações e os abraços. Eu, inchado,
exultava. Só que de repente olhei com atenção para a mesa do meu orgulho e
reparei no cadeirão à cabeceira, vazio de quem mais faltava. De repente, os elogios
e parabéns dos outros fundiram-se numa cacofonia vaga, que o fragor das ondas
contra a areia abafava, e de entre toda aquela gente, de toda aquela boa gente,
eu só conseguia ver quem na verdade lá não estava. De repente, senti a
necessidade de me afastar e de me sentar à beira de água mordendo o lábio,
contemplando o vácuo que de repente se abrira no meu peito com um estrondo
discreto.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Nesse dia senti a satisfação de ter pago a primeira
prestação de uma dívida com trinta anos, que ninguém me cobrara mas que nem por
isso era menos devida. Nesse dia, sofri a dor de ele não ter visto que eu tinha
cumprido.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Quando penso nestas coisas vem-me quase sempre à memória outra
memória, a seguinte memória, que por acaso ou talvez não por acaso se
atravessou ontem outra vez na minha mente quando saía do trabalho. Muitos anos
antes, no primeiro dia em que esse meu filho frequentou o jardim infantil, quando
chegámos às oito da manhã com o rapaz ao colo, a chorar contrariado pela
novidade, ele lá estava com a minha mãe, numa manhã que recordo muito fria de
Setembro, esperando-nos impecável de fato e gravata, aprumado, quase marcial,
só para dar um beijo na face do neto no princípio de um longo caminho. Tenho essa
lembrança gravada como que a estilete, desse fato e gravata que pareciam uma
ilha imponente, um pico vertical imperturbado pela agitação do mar de cores, de
correrias, de reencontros, de gente atrasada arrastando crianças pela mão, de
mais velhos a correr de mochila às costas, de gritos e risos rasgados de
repente pelo toque frenético da sineta que anunciava a primeira aula.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Isto era muito dele, este apego ao símbolo, à importância do
momento que marca, que merece alguma solenidade e a diferença de um fato e
gravata.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Quando me lembro deste momento, quando olho para o caminho
que percorri na minha vida ou aquele que os meus filhos agora encetaram e
comparo com o dele, quando revejo como foi fácil, sinto-me como um corredor de
estafetas a quem tivessem calhado uns cem metros suaves, em terreno plano e
pista de tartan, por entre bancadas de público, e que recebesse o testemunho de
um companheiro que teve que correr uma maratona e meia por montes e vales, em
terreno enlameado e traiçoeiro, longe dos olhares e das luzes e que ainda assim
teve forças para acompanhar mais uns metros o colega para que ele não esmorecesse.
Sendo justo, sinto a mesma pequenez que sinto quando hoje visito a casa que foi
sua e diante daquelas paredes forradas a milhares de livros imagino um homem
enorme fumando e lendo História ou Poesia ou um bom Eça, fazendo tempo para
pegar no turno da noite onde iria angariar mais uns centímetros quadrados do
tapete vermelho que a vida me estendeu por diante.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
O cientista sério sabe que, por muito inebriante que seja a
sua descoberta e o seu avanço, deve ter a humildade intelectual de constatar
que o seu contributo é pequeno, e só possível porque antes dele houve Newtons e
Gausses e Einsteins e Diracs que amontoaram grande parte do monte onde ele
agora acrescenta poeiras com o sentimento de quem cria montanhas. Do mesmo modo
nós, nos nossos dia-a-dias particulares, devemos com reverência lembrar-nos que
estamos aos ombros de gigantes, que em repartições, oficinas ou aradas, de
enxada ou serra ou caneta, deixaram feito quase tudo o que tinha que ser feito.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Por isso, no dia em que o meu filho teve a sua primeira aula
em Lovaina, à hora em que calculei estivesse a caminho do anfiteatro,
enviei-lhe um SMS desejando-lhe boa sorte e pedindo-lhe que nunca em cada
momento da sua vida profissional esquecesse que o avô esperara ao frio, de fato
e gravata, para lhe dar um beijo no primeiro dia de aulas.</div>
CMatahttp://www.blogger.com/profile/12803581531108411574noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4429286399744026234.post-86961005922192351682010-07-18T03:58:00.000-07:002010-07-18T04:06:27.529-07:00CorrespondênciaVelho Mata<br /><br />Na quinta-feira o seu morgado tirou a carta. Na sexta já aterrorizou as ruas de Lisboa, sozinho ao volante. Ainda não andei ao lado dele mas consta que se desenrasca.<br /><br />Parece – mas só parece – que vai longe aquele olhar receoso que ele lhe mandou de dentro do porta-bebés amarelo, quando lá enfiou o nariz para o espreitar, na primeira visita a sua casa. Ou quando estavam os dois sentados à beira da piscina na Bemposta, os pés dentro de água, o pai a consolá-lo dalgum desgostozito sem importância, a palavra suave e o braço por cima das costas.<br /><br />Pois esse mesmo já acabou o liceu e para o ano encontrá-lo-á em Bordéus ou Bruxelas, metido nos canhenhos de anatomia. Talvez tenhamos doutor, um dia, quem sabe?<br /><br />O perna-fina voltou ontem de três semanas num campo de férias na Pennsylvania. Anda naquela fase em que um tipo tem sempre razão, mesmo quando não tem. Ainda não auscultei, mas alimento a esperança que os américas lhe tenham instilado alguma daquela disciplina branca, anglo-saxónica e protestante lá deles, que mal não lhe fazia. Mas enfim, acho que o rapaz se fará, um dia destes, que algo de si tem.<br /><br />Como vê, vou tentando cumprir a minha parte. Descanse, que não me esqueci do que lhe fiquei a dever.<br /><br />De resto, deste que foi dar a sua volta, o mundo desmadrou-se um bocado. Lastimo dizer-lhe, mas as poucas acções da sua carteira (ainda não as vendemos) andam um bocado por baixo. As suas e as outras todas: deve ter levado consigo o bom karma todo deste planeta, que desde meados de 2008 têm sido só desgraças. Se perguntar ao Sócrates ele vai-lhe dizer que nunca estivemos tão bem, mas não acredite.<br /><br />E do nosso Sporting, melhor não falarmos. Veja se põe aí uma cunha ao Grande Chefe para que ele atire com um raio que fulmine a direcção da SAD. Mas daqueles com pontaria, que não sobre nenhum. Ah! E já agora outro no Queiroz da selecção.<br /><br />Quanto a mim, cá vou andando, cada dia com menos um dia que no dia anterior. Sinto-me naquela fase em que o mundo passa por mim sem grandes novidades. Como o pai dizia muitas vezes, citando o Churchill: “não será o princípio do fim, mas é certamente o fim do princípio”.<br /><br />Desculpar-me-á por ter estado tanto tempo sem aqui vir. Eu sei que desculpa. Sempre desculpou, até o que não devia. Prometo voltar mais vezes. Promessa fácil: sei que se falhar, perdoará outra vez.<br /><br />Não lhe envio lembranças porque todos nos lembramos, todos os dias.<br /><br />Inté<br /><br />CCMatahttp://www.blogger.com/profile/12803581531108411574noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4429286399744026234.post-71497259112145042942009-05-24T17:40:00.000-07:002009-05-24T17:42:11.015-07:00Um anoAqui abaixo, "link" para "post" evocativo: <br /><br /><a href="http://mataspeak.blogspot.com/2009/05/o-menino-do-rio.html">http://mataspeak.blogspot.com/2009/05/o-menino-do-rio.html</a>CMatahttp://www.blogger.com/profile/12803581531108411574noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4429286399744026234.post-28656555845588114812009-04-25T17:46:00.000-07:002009-04-25T17:56:37.139-07:00Três dedicatóriasNo seu derradeiro Novembro, almoçámos pela última vez frente a frente, no Varanda da União, excelente cozinha portuguesa num andar de cobertura, ao fim da rua Castilho. Por essa altura, já os resultados dos exames e as inquietações dos clínicos lançavam nuvens escuras sobre o seu estado de espírito. Mas não sobre o seu humor: para o provar contou-me uma história antiga e picaresca, com um colega de trabalho enrascado numa situação complicada no emprego, que terminava com o dito a proclamar:<br /><br />- Em resumo, estou f…<br /><br />E completava, com um sorriso breve:<br /><br />- E assim estou eu.<br /><br />Eu retorquia-lhe que não, que tivesse calma, que ainda havia muito jogo. Ele fez-me a vontade e falámos de outras coisas diante de um cabrito (dos feitos dos netos, da sua actividade associativa, da bondade do vinho e do serviço). Mas, percebo agora, intimamente ele já sabia.<br /><br />Um mês depois, ainda o pior não se tinha manifestado, passámos o jantar de consoada em sua casa. Notei aí que ele tivera um cuidado especial na elaboração dessa noite. Para além da excelente mesa de iguarias que açambarcava a sala, comprara postas de um bacalhau caríssimo, um primeiro entre pares do fiel amigo, tudo orçado em duzentos euros. Os miúdos, brincando com a situação, reclamavam que lhes fosse servido o bacalhau dos quarenta contos.<br /><br />Mais notei quando, já quase terminada a tradicional entrega dos embrulhos, ele anunciou uma novidade: uma prenda “só dele” (“não minha e da avó, só minha!”) para filhos e netos. Cada uma ostentava uma dedicatória diferente. Ao lê-las, imediatamente as senti como escritas por um homem que queria deixar uma marca, um legado, que podia já não ter oportunidade de voltar a dizer aquilo que queria.<br /><br />Ao meu filho mais novo, calhou-lhe “A cidade e as serras”. Na primeira folha branca escrevera:<br /><br />“Quando daqui a muitos anos tiveres a tua Biblioteca recheada de bons livros, quero que este figure nela com uma lembrança do avô Mata. Bom Natal!”<br /><br />Ao mais velho, que ele apelidava morgado, ofereceu um “Amor de perdição”, que lavrava:<br /><br />“Fernando Pessoa disse que a sua Pátria é a língua portuguesa. Aprende também tu a amá-la através deste belo livro. Bom Natal. Avô Mata.”<br /><br />A mim, deu-me o DVD do filme “Gloria”. No interior, colocara um rectângulo de papel com a sua fotografia e, por baixo:<br /><br />“Este é um dos filmes da minha vida. Não me lembro de quando o vi, mas foi de certeza há muitos anos. Para mim o seu grande valor, para além da magnífica realização de John Cassavetes e da soberba interpretação de Gena Rowlands, é o sublinhar do respeito que se deve ter pela palavra dada, mesmo que isso signifique ter de cumprir uma tarefa que se abomina.”<br /><br />Já de madrugada, no caminho para casa, perguntei aos rapazes se tinham percebido o que o avô lhes ofertara. Responderam em coro: “Sim! Um livro!” A que eu respondi: “Não, burros, uma dedicatória.”<br /><br />Vejo, nestas três dedicatórias, o resumo de uma vida, a síntese de um homem, assinada pelo próprio. O amor pelos livros, o amor pela nossa língua, o amor pela palavra de honra. Com estes três vectores, pode-se construir o espaço que ele encheu durante a sua passagem entre nós. E quando leio qualquer uma delas, percebo com clareza a falta que ele me faz.CMatahttp://www.blogger.com/profile/12803581531108411574noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4429286399744026234.post-91144355478676164312009-03-08T09:37:00.000-07:002011-06-16T16:45:41.946-07:00Os livros<meta equiv="Content-Type" content="text/html; charset=utf-8"><meta name="ProgId" content="Word.Document"><meta name="Generator" content="Microsoft Word 10"><meta name="Originator" content="Microsoft Word 10"><link rel="File-List" href="file:///C:%5CDOCUME%7E1%5CCARLOS%7E1%5CDEFINI%7E1%5CTemp%5Cmsohtml1%5C01%5Cclip_filelist.xml"><!--[if gte mso 9]><xml> <w:worddocument> <w:view>Normal</w:View> <w:zoom>0</w:Zoom> <w:hyphenationzone>21</w:HyphenationZone> <w:compatibility> <w:breakwrappedtables/> <w:snaptogridincell/> <w:wraptextwithpunct/> <w:useasianbreakrules/> </w:Compatibility> <w:browserlevel>MicrosoftInternetExplorer4</w:BrowserLevel> </w:WordDocument> </xml><![endif]--><style> <!-- /* Style Definitions */ p.MsoNormal, li.MsoNormal, div.MsoNormal {mso-style-parent:""; margin:0cm; margin-bottom:.0001pt; mso-pagination:widow-orphan; font-size:12.0pt; font-family:"Times New Roman"; mso-fareast-font-family:"Times New Roman"; mso-fareast-language:EN-US;} @page Section1 {size:595.3pt 841.9pt; margin:70.85pt 3.0cm 70.85pt 3.0cm; mso-header-margin:35.4pt; mso-footer-margin:35.4pt; mso-paper-source:0;} div.Section1 {page:Section1;} --> </style><!--[if gte mso 10]> <style> /* Style Definitions */ table.MsoNormalTable {mso-style-name:"Tabela normal"; mso-tstyle-rowband-size:0; mso-tstyle-colband-size:0; mso-style-noshow:yes; mso-style-parent:""; mso-padding-alt:0cm 5.4pt 0cm 5.4pt; mso-para-margin:0cm; mso-para-margin-bottom:.0001pt; mso-pagination:widow-orphan; font-size:10.0pt; font-family:"Times New Roman";} </style> <![endif]--> <p face="georgia" class="MsoNormal">Regressávamos num domingo cinza de Inverno, o carro num esforço suave a cada contracurva da serra. Todos vínhamos elogiando a casa que visitáramos a uns amigos, aquisição recente, moradia impressionante, quase apalaçada, de jardim generoso e balcão sobranceiro ao rio, salas ecoantes – até um lagar havia, esperando a azeitona nova! Ele, atento ao nosso entusiasmo, conduzia calado, quando, aproveitando um silêncio breve, comentou com uma nota de pena na voz:</p><p style="font-family: georgia;" class="MsoNormal">
<br /></p> <p style="font-family: georgia;" class="MsoNormal"><o:p> </o:p></p> <p style="font-family: georgia;" class="MsoNormal">- Pois já repararam que naquela casa maravilhosa não vimos um único livro?</p><p style="font-family: georgia;" class="MsoNormal">
<br /></p> <p style="font-family: georgia;" class="MsoNormal"><o:p> </o:p></p> <p style="font-family: georgia;" class="MsoNormal">Assim era. Um homem com uma biblioteca de quase três mil volumes – para mais todos lidos. Ainda hoje, quando regresso a sua casa, à nossa casa, é quando olho para aquelas prateleiras pejadas que invadiram as paredes, crescendo como uma hera centenária, que mais sinto a sua presença. Como se ainda ali o visse no cadeirão azul, abrindo na marca num gesto célere, tão típico dele, ou folheando sereno ou, ainda, de pé, todo esticado para retirar um livro arrumado mais lá em cima, como se a colher um fruto num ramo alto de um pomar.</p><p style="font-family: georgia;" class="MsoNormal">
<br /></p> <p style="font-family: georgia;" class="MsoNormal"><o:p> </o:p></p> <p style="font-family: georgia;" class="MsoNormal">Diante daquela sucessão de lombadas coloridas, arrumadas lado-a-lado como os dias de uma vida e repetindo-se em cada divisão da casa, a cada recanto do mobiliário, sinto-me como o Zé Fernandes de “A cidade e as serras” (um dos primeiros livros que me passou para as mãos, o que repetiu com os netos) quando, esmagado, visitava pela primeira vez a parisiense biblioteca do seu amigo Jacinto: “A Biblioteca transbordara através de todo o 202! Não se abria um armário sem que de dentro se despenhasse, desamparada, uma pilha de livros! Não se franzia uma cortina, sem que detrás surgisse, hista, uma ruma de livros! E imensa foi a minha indignação quando uma manhã, correndo urgentemente, de mãos nas alças, encontrei, vedada por uma tremenda colecção de Estudos Sociais, a porta do Water-Closet!”</p><p style="font-family: georgia;" class="MsoNormal">
<br /></p> <p style="font-family: georgia;" class="MsoNormal"><o:p> </o:p></p> <p style="font-family: georgia;" class="MsoNormal">Na verdade, lá não se ia a tanto. A porta da casa de banho não chegou a estar impedida. Mas, uma vez entrados, repararíamos que repousavam sempre sobre um banquinho baixo, de tampo esverdeado, três ou quatro livros.</p><p style="font-family: georgia;" class="MsoNormal">
<br /></p> <p style="font-family: georgia;" class="MsoNormal"><o:p> </o:p></p> <p style="font-family: georgia;" class="MsoNormal"><o:p> </o:p></p> <p style="font-family: georgia;" class="MsoNormal">Deixou-me, como parte melhor da sua herança, um apelo físico pelos livros, enquanto objecto e enquanto símbolo. Satisfaz-me o toque do papel impresso e da fímbria esfarelada daquelas edições mais antigas como as da Lello, que ainda pedem o corta-papéis. Inebria-me o cheiro de um calhamaço que esperou anos por ser aberto, uma mistura de tinta, couro e tempo passado. Encontrar-me-ão em livrarias, passeando-me lentamente ao longo de escaparates e estantes, a cabeça inclinada para ler os títulos, procurando tesouros ocultos. Desenvolvi, com os livros, uma relação química: compro por ter gostado de um título, de uma capa, de uma frase numa página aberta ao acaso. Algo muito parecido com o amor por uma mulher, que pode durar uma vida inteira só por causa de um primeiro sorriso. Não é a mim que apanham com um “e-book”.</p><p style="font-family: georgia;" class="MsoNormal">
<br /></p> <p style="font-family: georgia;" class="MsoNormal"><o:p> </o:p></p> <p style="font-family: georgia;" class="MsoNormal">Boas lojas de livros podem ser anárquicas, como foi a Buchholz em Lisboa ou ainda o é a Foyles de Londres, em Charing Cross, ou maciças, tal a FNAC da Avenue de Ternes em Paris, que pouco tem a ver com a loja de electrodomésticos com o mesmo nome que encontramos no Colombo. Ou pequenos jardins, de rosas seguras, como a Bulhosa das Amoreiras ou a livraria do IFP na Luís Bívar. Também obras de arte: a Lello do Porto, desafiando em estatura a fronteira Torre dos Clérigos. Ou armazéns recônditos como os alfarrabistas que se vão aguentando no Carmo e na Trindade. Em todas me sinto no aconchego de uma casa, como também ele se sentia.</p><p style="font-family: georgia;" class="MsoNormal">
<br /></p> <p style="font-family: georgia;" class="MsoNormal"><o:p> </o:p></p> <p style="font-family: georgia;" class="MsoNormal">Ora isto de algum sítio vem. Não sei se dos genes ou se daqueles domingos em que, uma vez por ano, o ajudava na verificação da biblioteca caseira. Ele, alcandorado num escadote, puxava volume a volume das estantes, abria a capa, ditava-me o número que inscrevera na marca do carimbo que todos os seus livros tinham. Eu, sentado cá em baixo, os pés sem chegar ao chão, marcava com uma cruz o título correspondente, num caderno de linhas. De vez em quanto parava e lia-me um parágrafo em voz alta, falava-me desse livro ou do seu autor. Deste modo fui ouvindo dizer, como se fossem visita lá de casa, de Malaparte e de Manuel de Mello, de Oliveira Martins e de Dos Passos, de Thomas Mann e de Graham Greene. E eu, um miúdo preguiçoso para ler, assim comecei por gostar de livros, ainda antes de apreciar a leitura.</p><p style="font-family: georgia;" class="MsoNormal">
<br /></p> <p style="font-family: georgia;" class="MsoNormal"><o:p> </o:p></p> <p style="font-family: georgia;" class="MsoNormal">Outras coisas não me conseguiu transmitir. Lia depressa, fluido, concentrado, quase voraz. Conseguia despachar três exemplares da Vampiro ou da Argonauta numa tarde de folga. Tinha apetites, por estilos, por autores. Viveu uma fase de neo-realismo italiano e empinou doses fartas de Pavese e de Vittorini. Apaixonou-se por Ross Mac Donald, um autor americano de “thrillers”, e foi a obra completa quase toda de seguida, à medida que os foi encontrando pelas livrarias, que não estavam editados em Portugal e a Amazon ainda não existia.</p><p style="font-family: georgia;" class="MsoNormal">
<br /></p> <p style="font-family: georgia;" class="MsoNormal"><o:p> </o:p></p> <p style="font-family: georgia;" class="MsoNormal"><o:p> </o:p></p> <p style="font-family: georgia;" class="MsoNormal">Admitia uma clara preferência por prosa, pela história, pelo testemunho político. Fascinava-o o período da segunda guerra, ele que nasceu em trinta e oito e que trabalhou depois numa Alemanha onde ainda eram visíveis, nas pessoas e nas pedras, as marcas do desastre. A este tema correspondia uma estante inteira, soberbamente encadernada a vermelho e negro. Mas podíamos também encontrar por lá espalhada bastante poesia, alguma filosofia, vestígios de ciências sociais. Recordo-me, já adulto, de me deparar numa prateleira mais alta com Tocqueville e Freud e de me perguntar se ele lera aquilo. Fizera-o, de facto.</p><p style="font-family: georgia;" class="MsoNormal">
<br /></p> <p style="font-family: georgia;" class="MsoNormal"><o:p> </o:p></p> <p style="font-family: georgia;" class="MsoNormal">De entre todos os autores da sua vasta colecção, nutria o amor mais profundo pelos grandes da nossa língua: Eça e Ramalho, Camilo, Júlio Dinis, o padre António Vieira, os diversos Fernando Pessoa, Aquilino. Citava-os com frequência e a propósito. “Como homem que devera e pagara”, “favas destas nem em Paris”, “malhas que o Império tece”, “que ferro!” e outras que tal povoam a memória que dele tenho. Não descurava, igualmente, os bons cultores que o português teve no Brasil: Machado de Assis, Jorge Amado, Erico Veríssimo e Graciliano Ramos, este último um dos que mais considerava. E, do seu século, Torga, Redol, Ferreira de Castro, José Régio, Cardoso Pires, José Rodrigues Miguéis e, este já com alguma reserva, Lobo Antunes.
<br /></p><p style="font-family: georgia;" class="MsoNormal">
<br /></p><p style="font-family: georgia;" class="MsoNormal">
<br /></p> <p style="font-family: georgia;" class="MsoNormal"><o:p> </o:p></p> <p style="font-family: georgia;" class="MsoNormal"><span style=""> </span></p> <p style="font-family: georgia;" class="MsoNormal">Três mil livros depois, ao chegar ao ocaso da vida, não seria um académico, nem um literato, mas sim um homem culto, epíteto que só as páginas dobradas conferem e que os canudos universitários não proporcionam.</p><p style="font-family: georgia;" class="MsoNormal">
<br /></p> <p style="font-family: georgia;" class="MsoNormal"><o:p> </o:p></p> <p style="font-family: georgia;" class="MsoNormal">Na última viagem para o hospital, insistiu em levar uns volumes antigos que comprara num alfarrabista, mandara restaurar e encadernar e acabara de receber: “O sargento-mor de Villar”, de Arnaldo Gama, e uma biografia de Bocage por Rocha Martins. Não percebi se ainda pensava poder lê-los ou se os queria simplesmente à mão. Mas se o Paraíso existir, deverá ser como o sonhou Jorge Luís Borges: uma espécie de biblioteca. E ele lá estará, acabando de ler essas duas obras que o acompanharam na derradeira hora, sentado num cadeirão azul, cercado de estantes altas e lombadas de cabedal. </p> CMatahttp://www.blogger.com/profile/12803581531108411574noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4429286399744026234.post-47523887734638472682009-02-18T12:21:00.000-08:002009-02-18T12:28:00.559-08:00RemissõesDois "links" a propósito para "posts" no blog Mataspeak, onde ele já foi tema de conversa.<br /><br /><a href="http://mataspeak.blogspot.com/2008/02/o-lugar-ao-lado.html">http://mataspeak.blogspot.com/2008/02/o-lugar-ao-lado.html</a><br /><br />e<br /><br /><a href="http://mataspeak.blogspot.com/2008/05/my-old-man.html">http://mataspeak.blogspot.com/2008/05/my-old-man.html</a>CMatahttp://www.blogger.com/profile/12803581531108411574noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-4429286399744026234.post-35415114265069096452009-02-05T20:52:00.000-08:002009-04-12T17:33:09.894-07:00Os cromosPois naquele tempo vendiam-se cromos da bola ricos e cromos da bola pobres.<br /><br />Estes, os pobres, até mais para o paupérrimo: tiras de seis centímetros de altura por pouco mais de dois de largo, com uma fotografia mal focada ou até tremida, quase sempre deficientemente impressa, montada sobre um fundo monocromático baço que contrastasse com o equipamento. Todas as figuras se empertigavam na mesma pose: de pé, com a trapeira ao lado da bota ou na mão, muito direitos que a largura do cromo não chegava para grandes movimentos. De um ano para o outro, se algum jogador se transferia para outro clube, o editor pintava o novo equipamento por cima da fotografia antiga, sem grandes preocupações de rigor. Para cada equipa, só dezasseis jogadores, para caberem todos numa página da caderneta.<br /><br />Os cromos ricos tinham mais do dobro do tamanho, boas chapas tiradas com as bancadas do clube em pano de fundo e jogadores em poses variadas. Vinha o plantel todo, o que dava uma caderneta mais grossa e difícil de completar. Vendiam-se em carteiras de três, não me recordo por quantos tostões, mas tostões suficientes para serem um luxo só justificável por uma boa nota na escola.<br /><br />Hoje, os cromos da bola, por comparação, são milionários. Cada carteira oferece seis. Para facilitar, autocolantes. As cadernetas, em papel acetinado e colorido, vêm multilingues para servirem praticamente toda a União Europeia. Pode-se encomendar, por via postal, os números em falta. Na altura, se quiséssemos acabar as colecções, tínhamos que cumprir todos os dias, no intervalo para recreio, o ritual da troca de repetidos. As figuras repetidas podiam ser uma tragédia económica: certa vez, numa única carteira que esgotou logo o magro pecúlio que levara para a tabacaria, saíram-me três exemplares do terceiro guarda-redes do Atlético. O olhar de desalento que devo ter exibido comoveu o tabaqueiro, normalmente severo, que me ofereceu nova carteira para reparar o rombo. À época, para terminar a colecção, só no Rossio, junto aos pilares da entrada da estação, onde fulanos com ar circunspecto faziam “trading” de cromos, comprando barato e vendendo caro.<br /><br />Colar as imagens na caderneta requeria habilidade de trabalhos manuais. As colas disponíveis não prestavam: ou a Cisne branca, uma pasta infame que endurecia que nem pedra à segunda utilização, bloqueando a espátula, ou a Cisne líquida, num pote com uma tampa de enroscar com pincel agarrado, que rapidamente borrava tudo o que apanhasse pela frente num rasto peganhento que acabava fatalmente nas mãos e nas roupas.<br /><br />O futebol que os cromos retratavam também diferia muito do de agora. Havia muitos mais portugueses, com patronímicos de cepa tradicional como Pavão, Rodrigues ou Henriques, em vez de “petits noms” como Deco ou Dani. Os jogadores ficavam uma vida inteira no mesmo clube. O Benfica ganhava muito, o Sporting um pouco, os outros nada. O Porto não passava ainda de um Belenenses do norte. O futebol praticava-se sobretudo a sul e especialmente em Lisboa e ao redor, onde residia a força industrial do país. Os clubes de bairro da capital, como o Atlético e o Oriental, ainda sobreviviam pela primeira divisão, como na altura se chamava. Fábricas como a CUF ou a Riopele conseguiam manter equipas a esse nível. Na outra banda, o Barreirense tinha dinheiro para contratar internacionais brasileiros. Farense e União de Tomar, entretanto falidos e semi-desaparecidos, nunca baixavam à segunda. Na Académica, ainda estudavam para doutor.<br /><br /><br />Foi neste Portugal de cromos e bola como já não há que um colega de primária, andaria eu pelos oito anos, me propôs um negócio da China: a aquisição de uma caderneta de cromos pobres, semi-preenchida, por um dado preço que não me ficou na memória. Como na altura se pedia autorização à parentela antes de concluir este género de negócios, assim fiz. Levei um não categórico do meu pai. “Nem pensar. Qual é o sentido de comprar uma caderneta velha? Isso é dinheiro deitado à rua!” Tive que me conformar com a nega e comunicar ao meu amigo que não havia acordo, porque o meu pai não deixava. Ainda fui xingado. Fiquei chateado.<br /><br />No dia seguinte, tive aula de ginástica. Praticava a modalidade no Sporting, com um professor de pêra, muito prestigiado por ter um programa de televisão dominical em que algumas crianças executavam uns pinos e corriam à volta do plinto, num estúdio mínimo. Nunca fui entusiasta deste desporto e o jeito não me favorecia. Pendurava-me no espaldar, corria e perfilava-me e pouco mais. O mestre dividiu-nos em categorias pela perfeição das cambalhotas e eu nunca passei da terceira e última. Dizia ele que eu metia mal a cabeça. Razão suficiente para cambalhotas pouco sucedidas, tendo hoje a concordar.<br /><br />As classes tinham lugar num ginásio debaixo da arquibancada do velho Alvalade e o meu pai ia recolher-me à saída, junto à escadaria das portas poente. Quando entrei para o carro, ele não arrancou logo: “tenho aqui uma coisa para ti”. Pendurei-me no banco da frente e ele meteu-me na mão uma dúzia de cromos, para as minhas mãozinhas de oito anos literalmente uma mão cheia, e logo dos cromos ricos. Fiquei extasiado – “ena!” – diante daquele presente inesperado que compensava o mau passo do frustrado arranjo do dia anterior. Abri as figurinhas em leque enquanto analisava a leva que me coubera em sorte. Aparentemente, saíra-me só um jogador conhecido:<br /><br />- Este é o Arnaldo, da CUF – resumi.<br />- Tens aqui também o Jacinto João, do Setúbal. E olha o Jaime Graça.<br />- E o Wagner do Sporting, não tinha visto!<br />- E aqui não tens o Damas?<br /><br />Era o Damas, realmente, de fato treino verde e boné. Não percebi como me podia ter escapado, na primeira leitura, o guarda-redes do meu clube, um dos jogadores que mais admirava. Afinal, a mão-cheia parecia mais cheia do que ao início parecia.<br /><br />- Não tinha reparado que também vinha aqui um do Belenenses – admirei-me.<br />- E aqui outro: o Pietra. E olha ali o Cubillas do Porto. E o Benje, do Farense.<br /><br />De facto, o Benje, único guarda-redes negro de todo o campeonato, passara-me desapercebido. Comecei a ficar baralhado. Não entendia de onde estava a vir aquela malta toda. O meu pai continuava:<br /><br />- Já viste aqui o Eusébio? E o Matine? E o Humberto Coelho. E olha aqui o Manaca…<br />- Tão aqui o Dinis e o Yazalde!<br /><br />A minha mão já não segurava tanto papel. E continuavam a aparecer vedetas e mais vedetas, cada vez em maior número. A equipa leonina já bem representada. O próprio Yazalde, o grande Chirola que aviava aos três e quatro por jogo, como cereja em cima do bolo, logo no meio do molhe. Eu, confuso com o que se estava a passar, perguntava:<br /><br />- Não percebo. Como é que eu não vi logo o Yazalde?<br />- Devia estar colado a outro. Arruma lá isso que vamos comprar a caderneta.<br /><br />Deliciado com mais esta boa nova, encostei-me cá atrás, repassando o meu molhe de cromos, e de cromos ricos! Até hoje, perdura em mim uma memória dupla sobre aquela tarde: a alegria intensa da surpresa e a confusão perante o processo, a estranheza sentida ao ver craques e mais craques a encavalitar-se na minha mão. Durante mais alguns anos, ainda me intrigava como fora possível aquele milagre de Canã da multiplicação dos cromos. Sei agora, claro, que ele comprara as carteiras e que as abrira, que ordenara os jogadores de modo a provocar aquele efeito de crescendo, que os guardara no bolso e os fora discretamente acrescentando, criando um momento mágico, breve mas eterno. Sei agora também que tanto cromo constituía para ele, à época, um pequeno sacrifício, que pagou em turnos e enxaquecas.<br /><br /><br />Porque escolhi uma história tão leve como primeira memória neste blogue? Porque diz muito sobre o homem que foi buscar o seu filho. E porque foi a primeira que me veio à cabeça, o que também tem o seu significado. Significado que só entendi totalmente quando anos depois vi na parede da aula do meu filho, no jardim infantil, um trabalho colectivo para o Dia do Pai, em que cada criança completara a frase “Gosto do meu pai porque…”. A que me tocava dizia: “… porque faz legos difíceis.”<br /><br />Construir legos difíceis, encher uma manita de cromos ricos, em suma, maravilhar, eis acções que dão significado ao que andamos por cá a fazer no tempo que nos está reservado. Poucos o percebem, prisioneiros que são da sua propria imagem de seriedade.<br /><br />Felizmente, nem todos assim: Henrique IV, monarca sábio, o rei que acabou com as guerras de religião em França, entendeu-o bem quando recebeu o embaixador de Espanha de gatas, montado por um dos filhos. Perante a estranheza do diplomata, perguntou-lhe se era pai. Quando este respondeu que sim, o monarca retorquiu: “Então, compreende certamente.”CMatahttp://www.blogger.com/profile/12803581531108411574noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-4429286399744026234.post-54202165298031442902009-02-04T19:33:00.000-08:002009-02-20T16:13:42.319-08:00Prefácio<div align="right"><span style="font-size:78%;">Um dia deu-me o sono como a qualquer criança. </span></div><div align="right"><span style="font-size:78%;">Fechei os olhos e dormi.<br /><br />Alberto Caeiro<br /></span></div><br />Este blogue foi criado “in memoriam” de Américo Carlos Pereira da Mata, meu pai, nascido em Vila Nova da Barquinha em 23 de Maio de 1938 e falecido em Lisboa a 25 do mesmo mês em 2008: um homem que vale a pena ser lembrado. Neste sítio, deixarei histórias que ilustram a memória que dele me ficou. Neste sítio irei repassando e repisando as muitas saudades, que por muito que as mate não se deixam morrer.<br /><br />Neste sítio contrariarei –contrariaremos - um dos poetas que ele mais apreciava, que escreveu, no mesmo poema de onde retirei a epígrafe:<br /><br />“Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,<br />Não há nada mais simples<br />Tem só duas datas — a da minha nascença e a da minha morte.<br />Entre uma e outra coisa todos os dias são meus.”<br /><br />Como o meu é apenas um dos ângulos pelos quais ele deve ser recordado, esta página fica aberta a contribuições. Os familiares e amigos que aqui queiram publicar podem remeter os seus textos para o endereço <a href="mailto:cmspmata@gmail.com">cmspmata@gmail.com</a>.<br /><br />O título deste blogue, “La gloire de mon père”, roubei-o sem pudor ao romance autobiográfico de Marcel Pagnol, que começa com a seguinte, belíssima, frase: “Je suis né dans la ville d'Aubagne, sous le Garlaban couronné de chèvres, au temps des derniers chevriers”. É o título que eu queria e o título que ele merece e o facto de estar ocupado desde 1957 pelo bom do Pagnol não tinha por que me intimidar.CMatahttp://www.blogger.com/profile/12803581531108411574noreply@blogger.com2