Dia vinte e cinco último passaram seis anos e continuam a
ressoar na minha memória as suas frases favoritas. Tiradas que ele soltava
recorrente e enfaticamente, para matizar com uma pincelada de humor uma
conversa que ouvia em silêncio, para lhe perverter o sentido com o ferrete da
ironia, para dar por terminado um papo que já se alongasse às voltas sobre si
mesmo. Tantas vezes me espanejou o pó da cabeça com estas citações que por
vezes me surpreendo, eu próprio, a repeti-las.
Aqui vai como é de moda um “top ten”, contextualizado e
comentado, numerado mas não – claro – ordenado.
1) Maria! Não me mates que sou tua mãe!
Esta era solta quando à sua volta lhe vinham com o relato
exagerado de algum dramalhão familiar ou, mais genericamente, com a descrição
de uma sacanice suave mas torpe que fulano praticara sobre beltrano.
“Maria! Não me mates que sou tua mãe!” é o título de um
folhetim de cordel de Camilo Castelo Branco, de curtas dez páginas, que
descreve o matricídio de uma viúva por sua filha a mando de um chuleco
novecentista. Camilo teve fases da vida em que escreveu a metro e a pataco, por
sobrevivência, e este curto conto macabro deve ser dessa lavra e foi por ele
publicado anónimo e em edição de autor, em 1848.
O texto é um tide inacreditável aos olhos dos nossos tempos.
Oscila entre um realismo cru na descrição dos factos, com diálogos que revelam
a total ausência de escrúpulos dos culpados e parágrafos descrevendo a
mutilação e o despedaçar do corpo, e um tom exageradamente moralizante no
comentário. O longo sub-título diz tudo, aliás:
“Meditação sobre o espantoso crime acontecido em Lisboa: uma
filha que mata e despedaça sua mãe. Mandada imprimir por um mendigo, que foi
lançado fora do seu convento, e anda pedindo esmolas pela porta. Oferecida aos
pais de família e aqueles que acreditam em Deus.”
Julgo que Camilo só podia estar a gozar com os pobres pais
de família burgueses que lhe compravam o folheto e podiam assim desencardir a
sua consciência do que lá pairasse, escandalizando-se com os horrores da vida e
dos costumes dessa plebe que habitava a Travessa das Freiras nº 17 e as
vizinhanças de tão soturno tugúrio.
Como Camilo pensaria também meu pai, que esgrimia este
título sem qualquer intenção de parecer sério. Poucos anos antes de morrer,
encontrou numa livraria o “Maria! Não me mates que sou tua mãe!”, reeditado em
2001 pela Nova Ática, e teve a paternal amabilidade de me vir cá a casa trazer
um exemplar, talvez para que eu percebesse.
2) Malhas que o império tece
Usava amiúde este célebre verso de Pessoa como comentário
conclusivo quando lhe contavam qualquer história que tivesse um final triste ou
fatídico. Muitas vezes complementava com os dois versos seguintes (“jaz morto e
apodrece/o menino de sua mãe”).
É possivelmente a única tirada desta lista que pronunciava
de modo sério, como que ciente do absurdo estrutural da vida, que este poema
superiormente descreve. Ao fim e ao cabo, e como com ele aprendi, da vida ou
nos rimos ou nos inquietamos, sem outro meio termo que não um fingimento.
Grande apreciador dos vários Pessoas, citava-os com
abundância e a-propósito. “Dos Lloyds Georges da Babilónia/ Não reza a História
nada”, para explicar a queda em desgraça de um político; várias partes do
“Mostrengo”, para nos incentivar a ultrapassar-nos; “Mais que isto/É Jesus
Cristo/Que não sabia nada de Finanças/Nem consta que tivesse biblioteca”,
quando nos queria dizer que a petulância dos que julgam que sabem não é mais do
que mania; e assim por diante. Recordo ser criança e ele me falar no Esteves
sem metafísica a acenar para o dono da Tabacaria.
3) Toma arsénico, João!
Na sua versão completa, que também ocorria: “Toma
arsénico, João; que teima a tua em não tomar arsénico”. Estas frases usava-as
ao princípio quando alguém lá em casa queria fugir a um tratamento prescrito,
mas com o tempo tornaram-se de aplicação para qualquer situação absurda ou que
ele quisesse desmontar, um “free-for-all” de galhofa que lhe arrancava um largo
sorriso. Creio que já vinha de longe porque tenho uma certa memória de meu avô
paterno também a proferir.
A tirada aparece no capítulo XXI das “Pupilas do Senhor
Reitor”, de Júlio Dinis. Daniel, o jovem médico, aparece em casa do tendeiro
João da Esquina em substituição do velho médico João Semana. Dá-se um choque
geracional que Júlio Dinis, mestre do diálogo, descreve com suave humor. No
final da consulta, Daniel recomenda um medicamento contendo arsénico, o que
leva a novo choque com o tendeiro, desconfiado com a possibilidade de ser envenenado.
A partir daí, a mulher do tendeiro, a Sra. Teresa, que simpatiza com o jovem
médico, vai passar a moer o juízo ao marido mandando-lhe tomar arsénico,
repetindo a frase a cada página, ironicamente parecendo que lhe deseja a morte.
Assim nasce uma frase ilógica.
4) Favas destas nem em Paris, Melchior amigo!
Na realidade, a frase como Eça a escreveu em “A cidade e as
serras” é “Deste arroz com fava nem em Paris, Melchior amigo”. O meu pai usava-a para elogiar qualquer prato
saboroso e não apenas favas.
A frase é dirigida por Jacinto ao seu caseiro, na sua primeira
refeição em Portugal depois da sua aventurosa chegada aos domínios que herdara nas
serras durienses, em Tormes, e que visita pela primeira vez na vida, vindo de
Paris onde levava uma existência de luxos vãos junto da élite francesa. Eça
adianta-nos que em Paris Jacinto sempre abominara favas, mas que “tentou
todavia uma garfada tímida – e de novo aqueles seus olhos, que o pessimismo
enevoara, luziram, procurando os meus (os do narrador Zé Fernandes, na
realidade o próprio Eça)”.
Este romance, “As cidades e as serras”, é central nas nossas
vidas, na minha e na dele. Foi dos primeiros livros a sério que li, pelos meus
treze anos. O meu pai emprestou-me o seu exemplar, mandado por ele encadernar a
couro azul, como fazia gosto em relação a todos os seus Eças, e eu devolvi-o
todo esgatanhado, o que o desconsolou um bocado. Julgo que o levou à conta de
investimento e espero que se tenha sentido compensado. Foi também um dos títulos
que escolheu, sentindo chegar o fim, para oferecer aos netos no seu último
Natal, como se uma carta de adeus fosse.
Mas este livro é também único em Eça. Num prato da balança
está toda a sua obra, crítica feroz e tremendamente lúcida da pequenez burguesa
de Portugal, dos seus defeitos e costumes – crítica que encanta pelo esplendor
da escrita e aterroriza pela surpresa da sua aplicabilidade, tal e qual, ao país
de hoje. No outro prato, pesando tanto como a vintena de volumes que se
amontoam do outro lado, arrastando lentamente para si o fiel da balança, está “A
cidade e as serras”. Neste romance, póstumo, Eça deixa-nos como testamento uma visão
positiva, uma porta de saída para essa pequenez que criticara mesmo nos grandes,
um final feliz possível para a vida que a inteligência nos sugere como absurda,
uma vitória da essência e da eternidade sobre a aparência fugaz que tantas
vezes por fraqueza idolatramos. É verdade que a essência que Eça louva, esse “palácio
da Grã-ventura”, é uma essência bucólica, rural, senhorial, uma Arcádia nas
serranias portuguesas e é por isso uma ideia reaccionária. Mas Eça, o homem do
mundo, sempre foi muito lá no fundo um moralista, um desancador incomformado do
“pútrido rebotalho da Civilização” e por isso não admira que procure uma saída
no que é oposto e não apenas no que é diferente.
E a frase das favas, que meu pai repetia, é o momento-chave
em “As cidades e as serras”: relata o instante transformacional em que a
crisálida do Jacinto parisiense, pálido, aborrecido com tudo, preso na teia dos
hábitos mundanos, se começa a esboroar para dar lugar a um Homem Novo, um
Jacinto refeito mas ancestral, sadio dos ares da serra, homem de família
superior aos vícios das vielas, enfim ser completo e feliz.
O meu pai fez na sua vida um trajecto cruzado com o de Jacinto.
Jacinto vai da cidade para a serra, o meu pai da vila de província para a
cidade. Talvez por isso nunca o senti inteiramente um lisboeta como eu sou.
Sempre intuí haver lá dentro um bocadinho seu de serra, uma aragem fresca de
Tejo soprando nas varas verdes de um canavial. Provavelmente por isso pediu
para lá ficar, na sua Tormes do Cais Pombeiro.
5) Liberta-te escravo, e solta os cães!
Dirigia-nos esta exclamação, sugerindo-nos desobediência, quando
nos queixávamos de ter que cumprir contrariados alguma obrigação, especialmente
se sentisse que era um daqueles deveres sociais com mais de grilheta do que de
sentido.
Só depois da sua morte descobri a origem desta frase, quando
vi o filme “A ultrapassagem”, de Dino Risi, com Vittorio Gassman e Jean-Louis
Trintignant, fita de 1962.
No início do filme, numa Roma desertada pelo feriado de 15
de Agosto, Bruno Cortona (Gassman), um malandreco “nullafacente” a aproximar os
quarenta anos pára o seu Lancia Aurelia B24 descapotável à procura de um sítio
para telefonar. Mete conversa com Roberto Mariani (Trintignant), um estudante
de direito que ficara em Roma para se preparar para os exames e que estava à
janela do seu andar. Roberto acaba por aceitar a proposta de Bruno para um
passeio de automóvel e assim começa uma viagem pela Toscânia e pela Itália dos
anos de sucesso do pós-guerra, mas ao mesmo tempo uma descida aos infernos em
que a fabulosa interpretação satírica de Gassman não consegue esconder um
prenúncio da tragédia que culminará o filme.
Logo numa das primeiras cenas dessa viagem, quando Bruno e
Roberto circulam a alta velocidade pelas ruas de Roma, Bruno quase atropela um
velhote que levava pela trela vários cães, nitidamente um empregado a passear cães
que não lhe pertencem. Evitando “in extremis” o acidente, Bruno grita para o
homem, sem mostrar remorso:
- Liberta-te escravo, e solta os cães!
Claro que foi uma agradável surpresa descobrir de repente a
frase que tantas vezes lhe ouvira e perceber que com quase meio século de diferença
víramos o mesmo filme: ele um jovem adulto em início de vida familiar, eu a
aproximar os cinquenta e com muito dessa etapa já feita. Não me surpreende que
o filme o tenha marcado. Talvez por momentos lhe tivesse passado pela cabeça que
gostaria de ser Bruno, exuberante e endiabrado, mas na realidade ele era bastante
mais Roberto, observador e temperado.
6) Escreve e agora risca por cima.
Esta frase aparece no filme “Um homem tranquilo”, de John
Ford, com John Wayne e Maureen O’Hara, realizado em 1952. Um bom filme sobre um
bom homem, Sean Thornton, que regressa à sua Irlanda natal vindo da América, onde
matara um homem num combate, e que procura uma vida nova. Uma daquelas histórias
leves e penetrantes que nos enxagua a alma e nos reconcilia com o pouco
merecedor género humano.
Neste filme há um personagem que tinha um caderninho onde dizia à mulher que apontasse o nome das pessoas com quem se incompatibilizava.
Ela escrevia e aí ele pedia-lhe “agora risca por cima”. O meu pai repetia
muitas vezes a mesma frase para a minha mãe, nas infrequentes alturas em que se
aborrecia com alguém. Depois esquecia o personagem, se entretanto não perdoasse,
o que até era o mais provável. Perdoar era uma liberdade que ele exercia com
grande liberdade, a começar nos que lhe eram mais próximos, comigo à cabeça.
Este era um dos filmes da vida de meu pai e entendo porquê.
Quando o vi, eu próprio encontrei muitas semelhanças de carácter entre ele e
Thornton, na sua serenidade e na sua ética pessoal. Há tempos comprei o DVD e
ofereci-o nos anos ao meu filho mais novo, referindo-lhe a predilecção do avô e
a minha explicação de porque assim era. Ele viu e depois comentou-me:
- Há parecenças mas há uma diferença: o avô não tinha nenhum
peso na consciência.
7) Venho do Bairro Alto cravadinho de facadas
Suspirava esta quando se sentia cansado das maldades que a
vida ou nós lhe fazíamos, ou enquanto retirava das costas alguma faca concreta,
operação que realizava com aparente facilidade.
Contou-me ele que esta frase fora usada por Mário Soares,
político que ele muito admirava, num discurso no parlamento quando era
primeiro-ministro, julgo que aquando da queda do governo do Bloco Central em
1985, e que Soares a atribuiu a António Sérgio. Não consegui confirmar a parte
do António Sérgio, e a frase que encontrei de Mário Soares é ligeiramente
diferente: “Venho do Bairro Alto cozidinho de facadas”.
Contrariamente a Mário Soares, que não esqueceu certas
facadas, tenho a impressão que no caso dele as facas que tirava das costas iam
directamente para o lixo. Quanto muito pedia a minha mãe que tomasse nota do
nome do apunhalador e que depois riscasse por cima.
8) Não me apontem caminhos!
Usava esta frase, mais até para o final da vida, quando
insistíamos demasiado para que ele fizesse qualquer coisa que não lhe apetecia fazer.
E complementava com um “Não sei para onde vou, sei que não vou por aí!”.
Ora estes últimos são os dois versos finais do “Cântico
Negro”, poema retirado do livro “Poemas de Deus e do Diabo” de José Régio. Já o “Não me
apontem caminhos!” não sei de onde vem. Venha de onde vier, na boca de meu pai
um sempre vinha agarrado aos outros.
Régio é um magnífico poeta, algo esquecido hoje, que meu pai
muito apreciava. Ouvia com gosto a “Toada de Portalegre”, dita em disco por
João Villaret, e repetia-a quase inteira quando calhava, talvez quando soprasse
o vento suão “que enche o sono de pavores, faz febre, esfarela os ossos, e
atira aos desesperados a corda com que se enforcam na trave de algum desvão...”.
O “Cântico Negro”, esse, acaba por ser uma versão bela e torturada
da lição mais importante que pelo exemplo ou pela palavra me deu para meu
caminho: que fosse livre e que trilhasse o meu destino seguindo a luz dos meus – nossos! – valores
e não os dedos apontados dos outros.
9) Soou enfim a trombeta castelhana...
Esta saía-lhe por vezes lá em casa quando alguém se assoava
com vigor excessivo, produzindo um som de buzina, e também pontualmente se
algum acidente mais escatológico ocorresse na sua vizinhança.
A trombeta castelhana aparece na estância 28 do quarto canto
dos Lusíadas:
“Deu sinal a trombeta Castelhana,
Horrendo, fero, ingente e temeroso;
Ouviu-o o monte Artabro, e Guadiana
Atrás tornou as ondas de medroso.
Ouviu o Douro e a terra Transtagana;
Correu ao mar o Tejo duvidoso;
E as mães que o som terribil escuitaram
Aos peitos os filhinhos apertaram.”
O sinal sonoro anuncia a chegada a Aljubarrota das tropas leais
ao rei D. João I de Castela, onde irão levar a tareia do século às mãos do
Mestre de Avis, o futuro D. João I de Portugal, e do condestável Nuno Álvares
Pereira.
A linha que meu pai repetia é um pouco diferente do verso de
Camões, mas creio que a retirara de um texto mais recente, já do seu século vigésimo, uma
paródia em rima de que tenho uma vaga lembrança de a ter lido com ele.
Desse sinal ou soasse, era em todo o caso a frase que saía
sempre que à sua volte se ouvisse algum som mais inadvertido...
10) Eram piores que inimigos, eram irmãos!
Esta é do Pitigrilli, pseudónimo do escritor italiano Dino
Segre, reputado pelas espírito das suas tiradas. Creio que Pitigrilli se
referia no seu caso mais a irmãos de ideias do que de sangue, mas o meu pai
usou-a bastante para comentar desentendimentos que ocorriam pontualmente entre
mim e o meu irmão, daqueles que há em todas as casas. Usava-a com ironia e não
com severidade, até porque nunca percebi que tivesse uma visão patriacal da
família, de todos atados uns aos outros. Com ele, sempre senti a família como
um local de liberdade, como um espaço em que cada um tinha o seu espaço. Recordo-me
de ele dizer, citando os lugares onde eu e o meu irmão estiveramos em férias no
Verão que terminara: “posso ter um filho na Jugoslávia e outro no Algarve, mas
se pensarmos uns nos outros somos uma família”.
Por isso ainda hoje pensamos e por isso continuamos a sê-lo,
até porque ele está hoje sempre mais perto do que a Jugoslávia então estava longe.