Sunday, June 8, 2014

Dicionário Ameriquês-Português



Dia vinte e cinco último passaram seis anos e continuam a ressoar na minha memória as suas frases favoritas. Tiradas que ele soltava recorrente e enfaticamente, para matizar com uma pincelada de humor uma conversa que ouvia em silêncio, para lhe perverter o sentido com o ferrete da ironia, para dar por terminado um papo que já se alongasse às voltas sobre si mesmo. Tantas vezes me espanejou o pó da cabeça com estas citações que por vezes me surpreendo, eu próprio, a repeti-las.

Aqui vai como é de moda um “top ten”, contextualizado e comentado, numerado mas não – claro – ordenado.


1) Maria! Não me mates que sou tua mãe!

Esta era solta quando à sua volta lhe vinham com o relato exagerado de algum dramalhão familiar ou, mais genericamente, com a descrição de uma sacanice suave mas torpe que fulano praticara sobre beltrano.

“Maria! Não me mates que sou tua mãe!” é o título de um folhetim de cordel de Camilo Castelo Branco, de curtas dez páginas, que descreve o matricídio de uma viúva por sua filha a mando de um chuleco novecentista. Camilo teve fases da vida em que escreveu a metro e a pataco, por sobrevivência, e este curto conto macabro deve ser dessa lavra e foi por ele publicado anónimo e em edição de autor, em 1848.

O texto é um tide inacreditável aos olhos dos nossos tempos. Oscila entre um realismo cru na descrição dos factos, com diálogos que revelam a total ausência de escrúpulos dos culpados e parágrafos descrevendo a mutilação e o despedaçar do corpo, e um tom exageradamente moralizante no comentário. O longo sub-título diz tudo, aliás:

“Meditação sobre o espantoso crime acontecido em Lisboa: uma filha que mata e despedaça sua mãe. Mandada imprimir por um mendigo, que foi lançado fora do seu convento, e anda pedindo esmolas pela porta. Oferecida aos pais de família e aqueles que acreditam em Deus.”

Julgo que Camilo só podia estar a gozar com os pobres pais de família burgueses que lhe compravam o folheto e podiam assim desencardir a sua consciência do que lá pairasse, escandalizando-se com os horrores da vida e dos costumes dessa plebe que habitava a Travessa das Freiras nº 17 e as vizinhanças de tão soturno tugúrio. 

Como Camilo pensaria também meu pai, que esgrimia este título sem qualquer intenção de parecer sério. Poucos anos antes de morrer, encontrou numa livraria o “Maria! Não me mates que sou tua mãe!”, reeditado em 2001 pela Nova Ática, e teve a paternal amabilidade de me vir cá a casa trazer um exemplar, talvez para que eu percebesse.


2)  Malhas que o império tece

Usava amiúde este célebre verso de Pessoa como comentário conclusivo quando lhe contavam qualquer história que tivesse um final triste ou fatídico. Muitas vezes complementava com os dois versos seguintes (“jaz morto e apodrece/o menino de sua mãe”).

É possivelmente a única tirada desta lista que pronunciava de modo sério, como que ciente do absurdo estrutural da vida, que este poema superiormente descreve. Ao fim e ao cabo, e como com ele aprendi, da vida ou nos rimos ou nos inquietamos, sem outro meio termo que não um fingimento.

Grande apreciador dos vários Pessoas, citava-os com abundância e a-propósito. “Dos Lloyds Georges da Babilónia/ Não reza a História nada”, para explicar a queda em desgraça de um político; várias partes do “Mostrengo”, para nos incentivar a ultrapassar-nos; “Mais que isto/É Jesus Cristo/Que não sabia nada de Finanças/Nem consta que tivesse biblioteca”, quando nos queria dizer que a petulância dos que julgam que sabem não é mais do que mania; e assim por diante. Recordo ser criança e ele me falar no Esteves sem metafísica a acenar para o dono da Tabacaria.


3) Toma arsénico, João!

Na sua versão completa, que também ocorria: “Toma arsénico, João; que teima a tua em não tomar arsénico”. Estas frases usava-as ao princípio quando alguém lá em casa queria fugir a um tratamento prescrito, mas com o tempo tornaram-se de aplicação para qualquer situação absurda ou que ele quisesse desmontar, um “free-for-all” de galhofa que lhe arrancava um largo sorriso. Creio que já vinha de longe porque tenho uma certa memória de meu avô paterno também a proferir.

A tirada aparece no capítulo XXI das “Pupilas do Senhor Reitor”, de Júlio Dinis. Daniel, o jovem médico, aparece em casa do tendeiro João da Esquina em substituição do velho médico João Semana. Dá-se um choque geracional que Júlio Dinis, mestre do diálogo, descreve com suave humor. No final da consulta, Daniel recomenda um medicamento contendo arsénico, o que leva a novo choque com o tendeiro, desconfiado com a possibilidade de ser envenenado. A partir daí, a mulher do tendeiro, a Sra. Teresa, que simpatiza com o jovem médico, vai passar a moer o juízo ao marido mandando-lhe tomar arsénico, repetindo a frase a cada página, ironicamente parecendo que lhe deseja a morte. Assim nasce uma frase ilógica.


4) Favas destas nem em Paris, Melchior amigo!

Na realidade, a frase como Eça a escreveu em “A cidade e as serras” é “Deste arroz com fava nem em Paris, Melchior amigo”.  O meu pai usava-a para elogiar qualquer prato saboroso e não apenas favas.

A frase é dirigida por Jacinto ao seu caseiro, na sua primeira refeição em Portugal depois da sua aventurosa chegada aos domínios que herdara nas serras durienses, em Tormes, e que visita pela primeira vez na vida, vindo de Paris onde levava uma existência de luxos vãos junto da élite francesa. Eça adianta-nos que em Paris Jacinto sempre abominara favas, mas que “tentou todavia uma garfada tímida – e de novo aqueles seus olhos, que o pessimismo enevoara, luziram, procurando os meus (os do narrador Zé Fernandes, na realidade o próprio Eça)”.

Este romance, “As cidades e as serras”, é central nas nossas vidas, na minha e na dele. Foi dos primeiros livros a sério que li, pelos meus treze anos. O meu pai emprestou-me o seu exemplar, mandado por ele encadernar a couro azul, como fazia gosto em relação a todos os seus Eças, e eu devolvi-o todo esgatanhado, o que o desconsolou um bocado. Julgo que o levou à conta de investimento e espero que se tenha sentido compensado. Foi também um dos títulos que escolheu, sentindo chegar o fim, para oferecer aos netos no seu último Natal, como se uma carta de adeus fosse.

Mas este livro é também único em Eça. Num prato da balança está toda a sua obra, crítica feroz e tremendamente lúcida da pequenez burguesa de Portugal, dos seus defeitos e costumes – crítica que encanta pelo esplendor da escrita e aterroriza pela surpresa da sua aplicabilidade, tal e qual, ao país de hoje. No outro prato, pesando tanto como a vintena de volumes que se amontoam do outro lado, arrastando lentamente para si o fiel da balança, está “A cidade e as serras”. Neste romance, póstumo, Eça deixa-nos como testamento uma visão positiva, uma porta de saída para essa pequenez que criticara mesmo nos grandes, um final feliz possível para a vida que a inteligência nos sugere como absurda, uma vitória da essência e da eternidade sobre a aparência fugaz que tantas vezes por fraqueza idolatramos. É verdade que a essência que Eça louva, esse “palácio da Grã-ventura”, é uma essência bucólica, rural, senhorial, uma Arcádia nas serranias portuguesas e é por isso uma ideia reaccionária. Mas Eça, o homem do mundo, sempre foi muito lá no fundo um moralista, um desancador incomformado do “pútrido rebotalho da Civilização” e por isso não admira que procure uma saída no que é oposto e não apenas no que é diferente.

E a frase das favas, que meu pai repetia, é o momento-chave em “As cidades e as serras”: relata o instante transformacional em que a crisálida do Jacinto parisiense, pálido, aborrecido com tudo, preso na teia dos hábitos mundanos, se começa a esboroar para dar lugar a um Homem Novo, um Jacinto refeito mas ancestral, sadio dos ares da serra, homem de família superior aos vícios das vielas, enfim ser completo e feliz.

O meu pai fez na sua vida um trajecto cruzado com o de Jacinto. Jacinto vai da cidade para a serra, o meu pai da vila de província para a cidade. Talvez por isso nunca o senti inteiramente um lisboeta como eu sou. Sempre intuí haver lá dentro um bocadinho seu de serra, uma aragem fresca de Tejo soprando nas varas verdes de um canavial. Provavelmente por isso pediu para lá ficar, na sua Tormes do Cais Pombeiro.


5) Liberta-te escravo, e solta os cães!

Dirigia-nos esta exclamação, sugerindo-nos desobediência, quando nos queixávamos de ter que cumprir contrariados alguma obrigação, especialmente se sentisse que era um daqueles deveres sociais com mais de grilheta do que de sentido.

Só depois da sua morte descobri a origem desta frase, quando vi o filme “A ultrapassagem”, de Dino Risi, com Vittorio Gassman e Jean-Louis Trintignant, fita de 1962. 

No início do filme, numa Roma desertada pelo feriado de 15 de Agosto, Bruno Cortona (Gassman), um malandreco “nullafacente” a aproximar os quarenta anos pára o seu Lancia Aurelia B24 descapotável à procura de um sítio para telefonar. Mete conversa com Roberto Mariani (Trintignant), um estudante de direito que ficara em Roma para se preparar para os exames e que estava à janela do seu andar. Roberto acaba por aceitar a proposta de Bruno para um passeio de automóvel e assim começa uma viagem pela Toscânia e pela Itália dos anos de sucesso do pós-guerra, mas ao mesmo tempo uma descida aos infernos em que a fabulosa interpretação satírica de Gassman não consegue esconder um prenúncio da tragédia que culminará o filme.

Logo numa das primeiras cenas dessa viagem, quando Bruno e Roberto circulam a alta velocidade pelas ruas de Roma, Bruno quase atropela um velhote que levava pela trela vários cães, nitidamente um empregado a passear cães que não lhe pertencem. Evitando “in extremis” o acidente, Bruno grita para o homem, sem mostrar remorso:

- Liberta-te escravo, e solta os cães!

Claro que foi uma agradável surpresa descobrir de repente a frase que tantas vezes lhe ouvira e perceber que com quase meio século de diferença víramos o mesmo filme: ele um jovem adulto em início de vida familiar, eu a aproximar os cinquenta e com muito dessa etapa já feita. Não me surpreende que o filme o tenha marcado. Talvez por momentos lhe tivesse passado pela cabeça que gostaria de ser Bruno, exuberante e endiabrado, mas na realidade ele era bastante mais Roberto, observador e temperado.


6) Escreve e agora risca por cima.

Esta frase aparece no filme “Um homem tranquilo”, de John Ford, com John Wayne e Maureen O’Hara, realizado em 1952. Um bom filme sobre um bom homem, Sean Thornton, que regressa à sua Irlanda natal vindo da América, onde matara um homem num combate, e que procura uma vida nova. Uma daquelas histórias leves e penetrantes que nos enxagua a alma e nos reconcilia com o pouco merecedor género humano.

Neste filme há um personagem que tinha um caderninho onde dizia à mulher que apontasse o nome das pessoas com quem se incompatibilizava. Ela escrevia e aí ele pedia-lhe “agora risca por cima”. O meu pai repetia muitas vezes a mesma frase para a minha mãe, nas infrequentes alturas em que se aborrecia com alguém. Depois esquecia o personagem, se entretanto não perdoasse, o que até era o mais provável. Perdoar era uma liberdade que ele exercia com grande liberdade, a começar nos que lhe eram mais próximos, comigo à cabeça.

Este era um dos filmes da vida de meu pai e entendo porquê. Quando o vi, eu próprio encontrei muitas semelhanças de carácter entre ele e Thornton, na sua serenidade e na sua ética pessoal. Há tempos comprei o DVD e ofereci-o nos anos ao meu filho mais novo, referindo-lhe a predilecção do avô e a minha explicação de porque assim era. Ele viu e depois comentou-me: 

- Há parecenças mas há uma diferença: o avô não tinha nenhum peso na consciência.


7) Venho do Bairro Alto cravadinho de facadas

Suspirava esta quando se sentia cansado das maldades que a vida ou nós lhe fazíamos, ou enquanto retirava das costas alguma faca concreta, operação que realizava com aparente facilidade.

Contou-me ele que esta frase fora usada por Mário Soares, político que ele muito admirava, num discurso no parlamento quando era primeiro-ministro, julgo que aquando da queda do governo do Bloco Central em 1985, e que Soares a atribuiu a António Sérgio. Não consegui confirmar a parte do António Sérgio, e a frase que encontrei de Mário Soares é ligeiramente diferente: “Venho do Bairro Alto cozidinho de facadas”.

Contrariamente a Mário Soares, que não esqueceu certas facadas, tenho a impressão que no caso dele as facas que tirava das costas iam directamente para o lixo. Quanto muito pedia a minha mãe que tomasse nota do nome do apunhalador e que depois riscasse por cima.


8) Não me apontem caminhos!

Usava esta frase, mais até para o final da vida, quando insistíamos demasiado para que ele fizesse qualquer coisa que não lhe apetecia fazer. E complementava com um “Não sei para onde vou, sei que não vou por aí!”.

Ora estes últimos são os dois versos finais do “Cântico Negro”, poema retirado do livro “Poemas de Deus e do Diabo” de José Régio. Já o “Não me apontem caminhos!” não sei de onde vem. Venha de onde vier, na boca de meu pai um sempre vinha agarrado aos outros.

Régio é um magnífico poeta, algo esquecido hoje, que meu pai muito apreciava. Ouvia com gosto a “Toada de Portalegre”, dita em disco por João Villaret, e repetia-a quase inteira quando calhava, talvez quando soprasse o vento suão “que enche o sono de pavores, faz febre, esfarela os ossos, e atira aos desesperados a corda com que se enforcam na trave de algum desvão...”.

O “Cântico Negro”, esse, acaba por ser uma versão bela e torturada da lição mais importante que pelo exemplo ou pela palavra me deu para meu caminho: que fosse livre e que trilhasse o meu  destino seguindo a luz dos meus – nossos! – valores e não os dedos apontados dos outros.


9) Soou enfim a trombeta castelhana...

Esta saía-lhe por vezes lá em casa quando alguém se assoava com vigor excessivo, produzindo um som de buzina, e também pontualmente se algum acidente mais escatológico ocorresse na sua vizinhança.

A trombeta castelhana aparece na estância 28 do quarto canto dos Lusíadas: 

“Deu sinal a trombeta Castelhana,
Horrendo, fero, ingente e temeroso;
Ouviu-o o monte Artabro, e Guadiana
Atrás tornou as ondas de medroso.
Ouviu o Douro e a terra Transtagana;
Correu ao mar o Tejo duvidoso;
E as mães que o som terribil escuitaram
Aos peitos os filhinhos apertaram.”

O sinal sonoro anuncia a chegada a Aljubarrota das tropas leais ao rei D. João I de Castela, onde irão levar a tareia do século às mãos do Mestre de Avis, o futuro D. João I de Portugal, e do condestável Nuno Álvares Pereira.

A linha que meu pai repetia é um pouco diferente do verso de Camões, mas creio que a retirara de um texto mais recente, já do seu século vigésimo, uma paródia em rima de que tenho uma vaga lembrança de a ter lido com ele.

Desse sinal ou soasse, era em todo o caso a frase que saía sempre que à sua volte se ouvisse algum som mais inadvertido...


10) Eram piores que inimigos, eram irmãos!

Esta é do Pitigrilli, pseudónimo do escritor italiano Dino Segre, reputado pelas espírito das suas tiradas. Creio que Pitigrilli se referia no seu caso mais a irmãos de ideias do que de sangue, mas o meu pai usou-a bastante para comentar desentendimentos que ocorriam pontualmente entre mim e o meu irmão, daqueles que há em todas as casas. Usava-a com ironia e não com severidade, até porque nunca percebi que tivesse uma visão patriacal da família, de todos atados uns aos outros. Com ele, sempre senti a família como um local de liberdade, como um espaço em que cada um tinha o seu espaço. Recordo-me de ele dizer, citando os lugares onde eu e o meu irmão estiveramos em férias no Verão que terminara: “posso ter um filho na Jugoslávia e outro no Algarve, mas se pensarmos uns nos outros somos uma família”.

Por isso ainda hoje pensamos e por isso continuamos a sê-lo, até porque ele está hoje sempre mais perto do que a Jugoslávia então estava longe.

Saturday, February 23, 2013

Standing on the shoulders of giants



O dia em que o meu pai mais me faltou, dos 1733 dias que já passaram desde que começou a fazer muita falta todos os dias, foi o dia em que chegou a carta da Universidade de Lovaina informando que o meu filho mais velho fora admitido no curso de medicina.

Estávamos em Agosto na nossa praia dos Aivados, de férias. Fora a minha sogra que passara por nossa casa em Lisboa para ver o correio e que ligara a dar a notícia, com um tremor triste na voz de quem via o neto dilecto partir durante anos para o estrangeiro. A notícia correu o areal e vieram os amigos e sucederam-se as felicitações e os abraços. Eu, inchado, exultava. Só que de repente olhei com atenção para a mesa do meu orgulho e reparei no cadeirão à cabeceira, vazio de quem mais faltava. De repente, os elogios e parabéns dos outros fundiram-se numa cacofonia vaga, que o fragor das ondas contra a areia abafava, e de entre toda aquela gente, de toda aquela boa gente, eu só conseguia ver quem na verdade lá não estava. De repente, senti a necessidade de me afastar e de me sentar à beira de água mordendo o lábio, contemplando o vácuo que de repente se abrira no meu peito com um estrondo discreto.

Nesse dia senti a satisfação de ter pago a primeira prestação de uma dívida com trinta anos, que ninguém me cobrara mas que nem por isso era menos devida. Nesse dia, sofri a dor de ele não ter visto que eu tinha cumprido.

Quando penso nestas coisas vem-me quase sempre à memória outra memória, a seguinte memória, que por acaso ou talvez não por acaso se atravessou ontem outra vez na minha mente quando saía do trabalho. Muitos anos antes, no primeiro dia em que esse meu filho frequentou o jardim infantil, quando chegámos às oito da manhã com o rapaz ao colo, a chorar contrariado pela novidade, ele lá estava com a minha mãe, numa manhã que recordo muito fria de Setembro, esperando-nos impecável de fato e gravata, aprumado, quase marcial, só para dar um beijo na face do neto no princípio de um longo caminho. Tenho essa lembrança gravada como que a estilete, desse fato e gravata que pareciam uma ilha imponente, um pico vertical imperturbado pela agitação do mar de cores, de correrias, de reencontros, de gente atrasada arrastando crianças pela mão, de mais velhos a correr de mochila às costas, de gritos e risos rasgados de repente pelo toque frenético da sineta que anunciava a primeira aula.

Isto era muito dele, este apego ao símbolo, à importância do momento que marca, que merece alguma solenidade e a diferença de um fato e gravata.

Quando me lembro deste momento, quando olho para o caminho que percorri na minha vida ou aquele que os meus filhos agora encetaram e comparo com o dele, quando revejo como foi fácil, sinto-me como um corredor de estafetas a quem tivessem calhado uns cem metros suaves, em terreno plano e pista de tartan, por entre bancadas de público, e que recebesse o testemunho de um companheiro que teve que correr uma maratona e meia por montes e vales, em terreno enlameado e traiçoeiro, longe dos olhares e das luzes e que ainda assim teve forças para acompanhar mais uns metros o colega para que ele não esmorecesse. Sendo justo, sinto a mesma pequenez que sinto quando hoje visito a casa que foi sua e diante daquelas paredes forradas a milhares de livros imagino um homem enorme fumando e lendo História ou Poesia ou um bom Eça, fazendo tempo para pegar no turno da noite onde iria angariar mais uns centímetros quadrados do tapete vermelho que a vida me estendeu por diante.

O cientista sério sabe que, por muito inebriante que seja a sua descoberta e o seu avanço, deve ter a humildade intelectual de constatar que o seu contributo é pequeno, e só possível porque antes dele houve Newtons e Gausses e Einsteins e Diracs que amontoaram grande parte do monte onde ele agora acrescenta poeiras com o sentimento de quem cria montanhas. Do mesmo modo nós, nos nossos dia-a-dias particulares, devemos com reverência lembrar-nos que estamos aos ombros de gigantes, que em repartições, oficinas ou aradas, de enxada ou serra ou caneta, deixaram feito quase tudo o que tinha que ser feito.

Por isso, no dia em que o meu filho teve a sua primeira aula em Lovaina, à hora em que calculei estivesse a caminho do anfiteatro, enviei-lhe um SMS desejando-lhe boa sorte e pedindo-lhe que nunca em cada momento da sua vida profissional esquecesse que o avô esperara ao frio, de fato e gravata, para lhe dar um beijo no primeiro dia de aulas.

Sunday, July 18, 2010

Correspondência

Velho Mata

Na quinta-feira o seu morgado tirou a carta. Na sexta já aterrorizou as ruas de Lisboa, sozinho ao volante. Ainda não andei ao lado dele mas consta que se desenrasca.

Parece – mas só parece – que vai longe aquele olhar receoso que ele lhe mandou de dentro do porta-bebés amarelo, quando lá enfiou o nariz para o espreitar, na primeira visita a sua casa. Ou quando estavam os dois sentados à beira da piscina na Bemposta, os pés dentro de água, o pai a consolá-lo dalgum desgostozito sem importância, a palavra suave e o braço por cima das costas.

Pois esse mesmo já acabou o liceu e para o ano encontrá-lo-á em Bordéus ou Bruxelas, metido nos canhenhos de anatomia. Talvez tenhamos doutor, um dia, quem sabe?

O perna-fina voltou ontem de três semanas num campo de férias na Pennsylvania. Anda naquela fase em que um tipo tem sempre razão, mesmo quando não tem. Ainda não auscultei, mas alimento a esperança que os américas lhe tenham instilado alguma daquela disciplina branca, anglo-saxónica e protestante lá deles, que mal não lhe fazia. Mas enfim, acho que o rapaz se fará, um dia destes, que algo de si tem.

Como vê, vou tentando cumprir a minha parte. Descanse, que não me esqueci do que lhe fiquei a dever.

De resto, deste que foi dar a sua volta, o mundo desmadrou-se um bocado. Lastimo dizer-lhe, mas as poucas acções da sua carteira (ainda não as vendemos) andam um bocado por baixo. As suas e as outras todas: deve ter levado consigo o bom karma todo deste planeta, que desde meados de 2008 têm sido só desgraças. Se perguntar ao Sócrates ele vai-lhe dizer que nunca estivemos tão bem, mas não acredite.

E do nosso Sporting, melhor não falarmos. Veja se põe aí uma cunha ao Grande Chefe para que ele atire com um raio que fulmine a direcção da SAD. Mas daqueles com pontaria, que não sobre nenhum. Ah! E já agora outro no Queiroz da selecção.

Quanto a mim, cá vou andando, cada dia com menos um dia que no dia anterior. Sinto-me naquela fase em que o mundo passa por mim sem grandes novidades. Como o pai dizia muitas vezes, citando o Churchill: “não será o princípio do fim, mas é certamente o fim do princípio”.

Desculpar-me-á por ter estado tanto tempo sem aqui vir. Eu sei que desculpa. Sempre desculpou, até o que não devia. Prometo voltar mais vezes. Promessa fácil: sei que se falhar, perdoará outra vez.

Não lhe envio lembranças porque todos nos lembramos, todos os dias.

Inté

C

Sunday, May 24, 2009

Saturday, April 25, 2009

Três dedicatórias

No seu derradeiro Novembro, almoçámos pela última vez frente a frente, no Varanda da União, excelente cozinha portuguesa num andar de cobertura, ao fim da rua Castilho. Por essa altura, já os resultados dos exames e as inquietações dos clínicos lançavam nuvens escuras sobre o seu estado de espírito. Mas não sobre o seu humor: para o provar contou-me uma história antiga e picaresca, com um colega de trabalho enrascado numa situação complicada no emprego, que terminava com o dito a proclamar:

- Em resumo, estou f…

E completava, com um sorriso breve:

- E assim estou eu.

Eu retorquia-lhe que não, que tivesse calma, que ainda havia muito jogo. Ele fez-me a vontade e falámos de outras coisas diante de um cabrito (dos feitos dos netos, da sua actividade associativa, da bondade do vinho e do serviço). Mas, percebo agora, intimamente ele já sabia.

Um mês depois, ainda o pior não se tinha manifestado, passámos o jantar de consoada em sua casa. Notei aí que ele tivera um cuidado especial na elaboração dessa noite. Para além da excelente mesa de iguarias que açambarcava a sala, comprara postas de um bacalhau caríssimo, um primeiro entre pares do fiel amigo, tudo orçado em duzentos euros. Os miúdos, brincando com a situação, reclamavam que lhes fosse servido o bacalhau dos quarenta contos.

Mais notei quando, já quase terminada a tradicional entrega dos embrulhos, ele anunciou uma novidade: uma prenda “só dele” (“não minha e da avó, só minha!”) para filhos e netos. Cada uma ostentava uma dedicatória diferente. Ao lê-las, imediatamente as senti como escritas por um homem que queria deixar uma marca, um legado, que podia já não ter oportunidade de voltar a dizer aquilo que queria.

Ao meu filho mais novo, calhou-lhe “A cidade e as serras”. Na primeira folha branca escrevera:

“Quando daqui a muitos anos tiveres a tua Biblioteca recheada de bons livros, quero que este figure nela com uma lembrança do avô Mata. Bom Natal!”

Ao mais velho, que ele apelidava morgado, ofereceu um “Amor de perdição”, que lavrava:

“Fernando Pessoa disse que a sua Pátria é a língua portuguesa. Aprende também tu a amá-la através deste belo livro. Bom Natal. Avô Mata.”

A mim, deu-me o DVD do filme “Gloria”. No interior, colocara um rectângulo de papel com a sua fotografia e, por baixo:

“Este é um dos filmes da minha vida. Não me lembro de quando o vi, mas foi de certeza há muitos anos. Para mim o seu grande valor, para além da magnífica realização de John Cassavetes e da soberba interpretação de Gena Rowlands, é o sublinhar do respeito que se deve ter pela palavra dada, mesmo que isso signifique ter de cumprir uma tarefa que se abomina.”

Já de madrugada, no caminho para casa, perguntei aos rapazes se tinham percebido o que o avô lhes ofertara. Responderam em coro: “Sim! Um livro!” A que eu respondi: “Não, burros, uma dedicatória.”

Vejo, nestas três dedicatórias, o resumo de uma vida, a síntese de um homem, assinada pelo próprio. O amor pelos livros, o amor pela nossa língua, o amor pela palavra de honra. Com estes três vectores, pode-se construir o espaço que ele encheu durante a sua passagem entre nós. E quando leio qualquer uma delas, percebo com clareza a falta que ele me faz.

Sunday, March 8, 2009

Os livros

Regressávamos num domingo cinza de Inverno, o carro num esforço suave a cada contracurva da serra. Todos vínhamos elogiando a casa que visitáramos a uns amigos, aquisição recente, moradia impressionante, quase apalaçada, de jardim generoso e balcão sobranceiro ao rio, salas ecoantes – até um lagar havia, esperando a azeitona nova! Ele, atento ao nosso entusiasmo, conduzia calado, quando, aproveitando um silêncio breve, comentou com uma nota de pena na voz:


- Pois já repararam que naquela casa maravilhosa não vimos um único livro?


Assim era. Um homem com uma biblioteca de quase três mil volumes – para mais todos lidos. Ainda hoje, quando regresso a sua casa, à nossa casa, é quando olho para aquelas prateleiras pejadas que invadiram as paredes, crescendo como uma hera centenária, que mais sinto a sua presença. Como se ainda ali o visse no cadeirão azul, abrindo na marca num gesto célere, tão típico dele, ou folheando sereno ou, ainda, de pé, todo esticado para retirar um livro arrumado mais lá em cima, como se a colher um fruto num ramo alto de um pomar.


Diante daquela sucessão de lombadas coloridas, arrumadas lado-a-lado como os dias de uma vida e repetindo-se em cada divisão da casa, a cada recanto do mobiliário, sinto-me como o Zé Fernandes de “A cidade e as serras” (um dos primeiros livros que me passou para as mãos, o que repetiu com os netos) quando, esmagado, visitava pela primeira vez a parisiense biblioteca do seu amigo Jacinto: “A Biblioteca transbordara através de todo o 202! Não se abria um armário sem que de dentro se despenhasse, desamparada, uma pilha de livros! Não se franzia uma cortina, sem que detrás surgisse, hista, uma ruma de livros! E imensa foi a minha indignação quando uma manhã, correndo urgentemente, de mãos nas alças, encontrei, vedada por uma tremenda colecção de Estudos Sociais, a porta do Water-Closet!”


Na verdade, lá não se ia a tanto. A porta da casa de banho não chegou a estar impedida. Mas, uma vez entrados, repararíamos que repousavam sempre sobre um banquinho baixo, de tampo esverdeado, três ou quatro livros.


Deixou-me, como parte melhor da sua herança, um apelo físico pelos livros, enquanto objecto e enquanto símbolo. Satisfaz-me o toque do papel impresso e da fímbria esfarelada daquelas edições mais antigas como as da Lello, que ainda pedem o corta-papéis. Inebria-me o cheiro de um calhamaço que esperou anos por ser aberto, uma mistura de tinta, couro e tempo passado. Encontrar-me-ão em livrarias, passeando-me lentamente ao longo de escaparates e estantes, a cabeça inclinada para ler os títulos, procurando tesouros ocultos. Desenvolvi, com os livros, uma relação química: compro por ter gostado de um título, de uma capa, de uma frase numa página aberta ao acaso. Algo muito parecido com o amor por uma mulher, que pode durar uma vida inteira só por causa de um primeiro sorriso. Não é a mim que apanham com um “e-book”.


Boas lojas de livros podem ser anárquicas, como foi a Buchholz em Lisboa ou ainda o é a Foyles de Londres, em Charing Cross, ou maciças, tal a FNAC da Avenue de Ternes em Paris, que pouco tem a ver com a loja de electrodomésticos com o mesmo nome que encontramos no Colombo. Ou pequenos jardins, de rosas seguras, como a Bulhosa das Amoreiras ou a livraria do IFP na Luís Bívar. Também obras de arte: a Lello do Porto, desafiando em estatura a fronteira Torre dos Clérigos. Ou armazéns recônditos como os alfarrabistas que se vão aguentando no Carmo e na Trindade. Em todas me sinto no aconchego de uma casa, como também ele se sentia.


Ora isto de algum sítio vem. Não sei se dos genes ou se daqueles domingos em que, uma vez por ano, o ajudava na verificação da biblioteca caseira. Ele, alcandorado num escadote, puxava volume a volume das estantes, abria a capa, ditava-me o número que inscrevera na marca do carimbo que todos os seus livros tinham. Eu, sentado cá em baixo, os pés sem chegar ao chão, marcava com uma cruz o título correspondente, num caderno de linhas. De vez em quanto parava e lia-me um parágrafo em voz alta, falava-me desse livro ou do seu autor. Deste modo fui ouvindo dizer, como se fossem visita lá de casa, de Malaparte e de Manuel de Mello, de Oliveira Martins e de Dos Passos, de Thomas Mann e de Graham Greene. E eu, um miúdo preguiçoso para ler, assim comecei por gostar de livros, ainda antes de apreciar a leitura.


Outras coisas não me conseguiu transmitir. Lia depressa, fluido, concentrado, quase voraz. Conseguia despachar três exemplares da Vampiro ou da Argonauta numa tarde de folga. Tinha apetites, por estilos, por autores. Viveu uma fase de neo-realismo italiano e empinou doses fartas de Pavese e de Vittorini. Apaixonou-se por Ross Mac Donald, um autor americano de “thrillers”, e foi a obra completa quase toda de seguida, à medida que os foi encontrando pelas livrarias, que não estavam editados em Portugal e a Amazon ainda não existia.


Admitia uma clara preferência por prosa, pela história, pelo testemunho político. Fascinava-o o período da segunda guerra, ele que nasceu em trinta e oito e que trabalhou depois numa Alemanha onde ainda eram visíveis, nas pessoas e nas pedras, as marcas do desastre. A este tema correspondia uma estante inteira, soberbamente encadernada a vermelho e negro. Mas podíamos também encontrar por lá espalhada bastante poesia, alguma filosofia, vestígios de ciências sociais. Recordo-me, já adulto, de me deparar numa prateleira mais alta com Tocqueville e Freud e de me perguntar se ele lera aquilo. Fizera-o, de facto.


De entre todos os autores da sua vasta colecção, nutria o amor mais profundo pelos grandes da nossa língua: Eça e Ramalho, Camilo, Júlio Dinis, o padre António Vieira, os diversos Fernando Pessoa, Aquilino. Citava-os com frequência e a propósito. “Como homem que devera e pagara”, “favas destas nem em Paris”, “malhas que o Império tece”, “que ferro!” e outras que tal povoam a memória que dele tenho. Não descurava, igualmente, os bons cultores que o português teve no Brasil: Machado de Assis, Jorge Amado, Erico Veríssimo e Graciliano Ramos, este último um dos que mais considerava. E, do seu século, Torga, Redol, Ferreira de Castro, José Régio, Cardoso Pires, José Rodrigues Miguéis e, este já com alguma reserva, Lobo Antunes.



Três mil livros depois, ao chegar ao ocaso da vida, não seria um académico, nem um literato, mas sim um homem culto, epíteto que só as páginas dobradas conferem e que os canudos universitários não proporcionam.


Na última viagem para o hospital, insistiu em levar uns volumes antigos que comprara num alfarrabista, mandara restaurar e encadernar e acabara de receber: “O sargento-mor de Villar”, de Arnaldo Gama, e uma biografia de Bocage por Rocha Martins. Não percebi se ainda pensava poder lê-los ou se os queria simplesmente à mão. Mas se o Paraíso existir, deverá ser como o sonhou Jorge Luís Borges: uma espécie de biblioteca. E ele lá estará, acabando de ler essas duas obras que o acompanharam na derradeira hora, sentado num cadeirão azul, cercado de estantes altas e lombadas de cabedal.

Wednesday, February 18, 2009

Remissões

Dois "links" a propósito para "posts" no blog Mataspeak, onde ele já foi tema de conversa.

http://mataspeak.blogspot.com/2008/02/o-lugar-ao-lado.html

e

http://mataspeak.blogspot.com/2008/05/my-old-man.html